06 dezembro 2010

Sobre os Livros: Pseudo-Ensaio

Nunca antes fez tanto sentido publicar este pseudo-ensaio, assim lhe chamei, que escrevi há uns tempos no meu blogue pessoal. Republico-o aqui na esperança de que se iluminem alguns espíritos, na esperança de tornar claro aquilo que para muitos é por demais complexo, na esperança enfim, quiçá vã, de que se compreendam os meus intuitos.


Tantas vezes me tenho indagado sobre se a experiência dos textos ou livros mais interessantes da primeira infância não é um requisito essencial para que se tenha uma preocupação através de toda a vida em relação a ela e também por literatura menos, mas igualmente importante. Os anseios do espírito,o seu tolerável inconformismo pelos constrangimentos do condicional e do limitado, pode muito bem exigir encorajamento nos princípios. Em todo o caso, seja por que razão for, as pessoas perderam a prática da leitura,assim como o gosto pela mesma. Não têm a expectativa do deleite ou aperfeiçoamento proveniente da leitura. Elas são, dir-se-ia, "genuínas" ao ter poucas pretensões culturais e ao recusar vénias rituais hipócritas para com a (alta) cultura.
Pergunta à qual nunca me esquivo é a de perguntar às pessoas, particularmente àquelas com quem tenho mais confiança, que livros realmente lhes interessam. Verdade seja dita: a maior parte delas fica silenciosa, embaraçada, nalguns casos, com a pergunta, escudando-se então,não raras vezes de forma inteligente, a responder-me. A noção de livros como objecto inseparável e de absoluta dedicação é-lhes estranha. Não há palavra impressa a que recorram para mera consulta, inspiração ou até mesmo satisfação. Todavia, vezes há em que me mencionam determinado livro, embora sem pretensões literárias, que, com a sua segurança subnietzschiana, permita-se-me o neologismo, os incita de algum modo para uma nova maneira de viver. Outros há que referem obras recentes que os impressionaram e apoiaram a própria interpretação de si próprios.
Perdoe-se-me a audácia do meu livre pensar, mas imaginemos uma dessas pessoas a passear pelo Louvre, que curiosa e frustrantemente ainda não tive ocasião de visitar, e pode calcular-se logo a condição da sua alma. Na sua inocência das histórias da antiguidade , sobretudo, grega e romana, Rafael, Da Vinci, Miguel Ângelo, Rembrandt e todos os outros não lhes podem dizer nada. Tudo o que vêem são formas e cores - a chamada arte moderna. Em resumo, como muito mais na sua vida espiritual, os quadros, as estátuas e as restantes manifestações artísticas são abstractos. Não atendendo ao que grande parte da sabedoria moderna reivindica, estes artistas contavam com uma imediata identificação dos seus temas e, acima de tudo, que tivessem um poderoso significado para quem os via. As obras eram a plenitude desse significado, conferindo-lhes uma realidade física e daí completando-os. Sem esse significado, e sem serem algo de essencial para quem as vê como ser moral, político e até religioso, as obras perdem a sua essência. Não é apenas a tradição que se perde quando a voz da civilização elaborada há milénios foi silenciada desta forma. É o próprio ser que desaparece para lá do dissolvente horizonte. Lembro-me de a minha saudosa, e hoje amicíssima, professora de Latim e Grego, me ter contado um episódio que bem se relaciona com o que aqui escrevo. Contou-me ela que há muitos anos atrás recebeu de um aluno, que viajara a Itália, um postal no qual se lia qualquer coisa como, não ipsis verbis, " A senhora não é professora, mas sim uma agente de viagens." Julgo que nada podia ter expressado melhor a intenção da senhora como educadora e como pedagoga. Achava o aluno que ela o preparara para ver. Depois podia começar a pensar por si próprio, tendo já alguma coisa sobre que pensar. É nesse sentido que afirmo que a educação hodierna deve tentar encontrar o que quer que haja nos estudantes que anseiam por se realizarem e reconstruir a aprendizagem que lhes possibilite, de maneira autónoma, procurar essa realização.
Nos tempos de hoje, os estudantes nada têm como um Eça que deu a tantos de nós os inesquecíveis Egas, Carlos, Craft's, etc, com que afinámos a nossa visão, permitindo-nos alguma subtileza na nossa capacidade de discernir entre tipos humanos. É um conjunto complexo de experiências que dá a uma pessoa a possibilidade de dizer muito simplesmente : " Aquele fulano é um João da Ega." Sem a literatura, nenhuma dessas, por vezes caricatas, observações é possível e perde-se então a fina arte da comparação. É assustadora a ignorância psicológica das pessoas, mormente dos estudantes, na medida em que têm apenas psicologia pop para lhes dizer como são os outros, e toda uma gama dos seus motivos. Quando vacila o conhecimento que devemos quase exclusivamente ao génio literário, as pessoas tornam-se mais iguais entre si, por não poderem ser de outro modo. O que a pobreza de espírito coloca em lugar da verdadeira diversidade são aspectos, chamemos-lhes, de ordem externa que dão ao observador dicas sobre o que se passa lá dentro.
A falta de educação tem como resultado a busca, pelas pessoas, por esclarecimentos onde quer que estejam prontamente disponíveis. A maior parte vira-se para o cinema. Os filmes, progressivamente emancipados da tirania literária sob a qual estavam e que lhes dava uma má consciência, tornaram muitos, alguns até com pretensões sérias, intoleravelmente ignorantes e prontos à manipulação. Por isso mesmo reitero que o facto de as pessoas não lerem bons livros tanto enfraquece a visão como aumenta a nossa tendência mais fatal - a crença de que o momento presente reflecte toda a existência.
Estou em crer que a única forma de contrariar essa tendência é intervir com mais vigor na educação daqueles, hoje já não tão poucos, quem vêm para a Universidade com um forte desejo de un je ne sais quoi, que receiam não conseguir descobri-lo e aos quais é vital cultivar a mente para que a sua busca tenha êxito. Começar pelos Clássicos, os quais devem ser aqueles que devemos afirmar estar a reler e nunca a ler segundo Italo Calvino, na sua obra Porquê ler os clássicos? , é e será sempre uma óptima empreitada para a formação intelectual de uma pessoa. Não permitamos pois, e com isto concluo esta dissertação absolutamente subjectiva, que as pessoas, e insisto sempre - os estudantes, permaneçam ignorantes à Cultura lato sensu e aos livros stricto sensu. A perspectiva mais comum deles carece pois de uma consciência das profundidades, bem como das alturas e inevitavelmente de um maior humanismo e sensibilidade.

1 comentários:

José Couto disse...

Cito-o a jeito de comentário, caro amigo: "(...) reitero que o facto de as pessoas não lerem bons livros tanto enfraquece a visão como aumenta a nossa tendência mais fatal - a crença de que o momento presente reflecte toda a existência."
Não reflecte. A civilização está esfomeada do "ser" de Parménides e mesmo assim prefere morrer à fome.
Se o “ser” não voltar a ser "Ser" e teimar ser mera aparência, medíocre e quentinha, sem sentido do que fomos e podemos ser… estamos tramados e mal pagos (como eu gostaria de não estar a ser literal!!!). Este é o drama das (in)consciências “mestradas e doutoradas” que o país fabrica em números de BolonhESA educacional. Houvesse mais “Palhinha” intelectual para dar de comer à burrice professoral e ainda teriamos esperança.

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