07 dezembro 2010

Carta sobre o Humanismo - Martin Heidegger


“Comment redonner um sens au “humanisme?” - Beaufret



Escolhi desta vez uma obra de carácter mais filosófico, uma das minhas últimas leituras estivais: Carta sobre o Humanismo de Martin Heidegger, numa edição da Guimarães editores. Heidegger, filósofo alemão, será sem dúvida um dos pensadores mais importantes de toda a história do século XX, a par com outros nomes indeléveis como os de Bertrand Russel, Wittgenstein ou Foucault. Seria também decisiva a influência daquele filósofo na obra de Jean-Paul Sartre.
Abandonando a teologia, mergulhou nos helenos para tentar encontrar neles a substância que de alguma forma amparasse o homem contemporâneo num mundo desesperançado de Deus. Erguendo-se contra a tradição metafísica, voltou-se para o ser (ontologia), procurando encontrar um norte num cenário onde os valores da religião e da metafísica haviam sido abalados até as suas raízes.
A filosofia heideggeriana é toda ela traduzida numa linguagem altamente cifrada,complexa e, dir-se-ia também, de difícil compreensão. Aliás é justamente isso que marca o chamado Deutschesgeist:o espírito alemão, que sempre espantou o Ocidente pela sua complexidade, diversidade, seriedade e profundidade. Kant, Hegel, Marx e Nietzsche são, nomes que desde logo, constituem disso mesmo um exemplo.
Muito cultuado, Heidegger foi um fervoroso apologista do nazismo antes da derrota da Alemanha, na segunda guerra mundial. Cumpre dizer que ficou, para muitos, como um pensador original e um crítico da sociedade tecnológica do século XX. A corrente em que se insere o seu pensamento e obra é designada de "Existencialismo", muito na linha do pensamento de Kierkegaard, à qual Heidegger se filiou. Foi também um escritor prolífico, sendo que se estima que, a calcular tudo o que escreveu, isso reuniria 70 obras.
Justamente uma dessas obras foi a Carta sobre o Humanismo, de que aqui, brevemente, falarei. Embora Heidegger já tivesse um renome respeitado no continente europeu, jamais se debruçara e escrevera uma obra de teor explicitamente “humanístico” e “ético” e a sua vinculação ao partido nazi, até o final da guerra, tornava ainda mais suspeitas as intenções do autor. Ante tal cenário, Jean Beaufret, existencialista francês que tentava ligar a obra de Heidegger ao existencialismo, escreve uma carta pedindo ao pensador alemão que esclarecesse que significado se poderia dar ao humanismo abalado por duas guerras mundiais sucessivas.
Heidegger responderia então, a Beaufret, em Carta sobre o Humanismo. Em linhas generalíssimas, o filósofo alemão irá propor, tendo por base o fragmento 119 de Heráclito, que a ética abandone o moralismo superficial e o legalismo dos códigos de costumes e procure encontrar a sua raiz na morada do próprio ser humano. A partir da compreensão radical da morada do ser no homem, seria possível entender como emergem todos os comportamentos e costumes quotidianos de cada um.
Contrário às demandas por um humanismo e às novas correntes de pensamento rotuladas, Heidegger vai dizer que “na sua gloriosa era, os gregos pensaram sem tais títulos”. Para ele, só quando o pensamento sai do seu elemento próprio é que, por perder o poder de guardar a sua essência, a técnica passa a ser valorizada como actividade cultural e a “Filosofia vai transformar-se numa técnica de explicação pelas causas últimas”, numa crítica directa à metafísica feita por Aristóteles, que buscava as causas últimas das coisas. O humanismo, de facto, deveria consistir numa meditação que preservasse o homem na sua humanidade, na sua essência.
Todavia, para experimentar a sua essência é preciso que se retome as questões originárias da história do ser: a sua “pátria”, que na concepção adoptada por Heidegger, aqui, não tem uma conotação nacionalista, mas apenas ontológica-historial de um momento no qual o homem esteve mais próximo do ser. O esquecimento do ser é o resultado desse distanciamento do homem em relação à sua “pátria”. Concebida nesses termos a metafísica heideggeriana revela um forte apelo à tradição clássica que se concretizaria por um regresso ao pensamento originário helénico.
O humanismo de Heidegger, nas suas próprias palavras, é aquele que “pensa a humanidade do homem desde a proximidade do ser”. Em causa está, portanto,não o homem, mas a sua história e origem, do ponto de vista da verdade do ser. O sucesso desse humanismo, para além do homem, depende da linguagem e do acesso do pensamento originário àquela verdade a que pertence a linguagem. Em suma, “a essência do homem reside na ec-sistência”, isto é, o humanismo deve voltar-se não para o ente humano, mas para a sua existência autêntica na verdade do ser-no-mundo. O mundo, aqui, é concebido como o lugar no qual o ser aparece: uma clareira, no sentido heideggeriano.
Heidegger nega o humanismo para poder afirmá-lo. Ele o nega no sentido que foi pensado até então, tendo por base a concepção metafísica do homem enquanto “animal racional”. “Dar-lhe novamente um sentido pode significar: determinar de novo o sentido da palavra”. E para isso a essência do homem deve ser experimentada mais originalmente e essa essência é justamente a sua ec-sistência e a sua importância é recebida do próprio ser para a vigilância do ser, pondo-o na própria verdade do ser. “Importa a humanitas ao serviço da verdade do ser, mas sem o humanismo no sentido metafísico”.
Heidegger não criou nem se dedicou ao estudo da Ética, mas podemos perceber que o seu discurso nos remete para os fundamentos ontológicos da eticidade. Ao tratar do ethos originário, da morada, o filósofo remete-nos para uma nova perspectiva ética. Não podemos atribuir um carácter moral à sua filosofia,pois, estaríamos a interpretar erroneamente o seu pensamento. No entanto, a busca de uma Ética originária é necessária, visto que o homem passa por uma crise histórica, fruto de uma falta de compreensão do sentido do Ser. E acreditamos que a partir desta nova visão e postura “ética”,ele possa indicar caminhos que o direccionem para uma possível solução desta crise, que nada mais é do que uma crise de compreensão do próprio Ser do homem.

2 comentários:

José Couto disse...

Valioso texto, caríssimo André.
A “ontologia da deontologia” em Heidegger está com uma clareza irritante… (risos)
Abraço

Marques disse...

onde é que posso encontrar o livro: Carta Sobre o Humanismo, de Martin Heidegger?
Se alguém souber, por favor, pode indicar-me para o e-mail: alvaro1904@hotmail.com
OObrigado

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