21 dezembro 2010

O RECOMEÇAR DO FILHO DO HOMEM

René Magritte, Le fil's de l'homme
Recomeça...
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...


Miguel Torga


Nas palavras do próprio pintor, “o homem do chapéu de coco é o Sr. Normal, no seu anonimato. Eu também uso um; não tenho vontade de me destacar das massas.” Em Magritte assiste-se a uma comum vontade de assim permanecer: comum. O insólito cresce quando observamos cada não-rosto. O que aqui se tenta é demonstrar que cada traço facial por ele pintado esconde um conjunto de sentimentos que o artista não deseja manifestar. Trata-se então de uma camuflagem que se estende das roupas ao rosto. Um intimista, de facto, mas que só em segredo diz algo sobre si. Se o anonimato só for conseguido à custa de uma redonda maçã verde, que assim seja.
Mas o “Recomeçar” de Torga dá um novo sentido à maçã verde: “De nenhum fruto queiras só metade”. O Sr. Normal quer também saborear a sua vida em toda a sua inteireza, sem nunca se saciar, mesmo que vá colhendo ilusões atrás de ilusões. O segredo está em fazê-lo sem angústia e sem pressas. Só assim se consegue que os passos rumo ao futuro, num caminho obviamente duro, sejam dados em liberdade.
Não o fazer é perder a consciência de si e da sua própria humanidade. Permitir que a loucura deixe de ser nossa para passarmos a ser da loucura. Porque a loucura só é nossa enquanto, com lucidez, nela nos reconheçamos.

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