28 setembro 2011

Para acabar de vez com a cultura


O título é de um livro do Woody Allen. Não creio que ele, ou nós, imaginássemos que quando este livro foi escrito e a palavra cultura era um bilhete de identidade, esse mundo estivesse em vias de extinção. Cresci num mundo, poderia dizer, controlado pela cultura. Comíamos cinema clássico e filmes russos e alemães com sete horas (não eram pera doce), papávamos Bergman ao pequeno-almoço, e ninguém podia chegar à puberdade sem ter lido pelo menos um romance de Tolstoi e Dostoievski, de Stendhal e Flaubert. As meninas tinham de chorar com Alexandre Dumas e a Dama das Camélias e os rapazes tinham de ir aos pássaros e beijar uma Becky Thatcher (não é parente da Mrs.) com a leveza do Tom Sawyer. Passávamos uma tarde a preguiçar com Huckleberry Finn no Mississípi. mark Twain foi um pai para a literatura e para nós. Fomos caçar baleias com Melville.

Tínhamos de saber distinguir entre a sonoridade melancólica de Chopin e a alegria cantante de Mozart, entre quintas e nonas fossem as Beethoven ou as de Mahler. E tínhamos de saber distinguir Cole Porter e Irvind Berlin, John Ford e Howards Hawks. Tínhamos de saber as subtilezas de Nietzsche e Schopenhauer para participar numa discussão onde entrasse a palavra niilismo (e a palavra niilismo estava sempre a romper conversas) e tínhamos de saber a diferença subtil entre o materialismo histórico e o materialismo dialéctico. O cânone e a vulgata. Alguns de nós lemos "Das Kapital" (nunca passa de moda) e outros leram o proibido Livro Vermelho do camarada Mao. Ele há gente para tudo, como dizia o avô Maia. Eu falei n'"Os Maias"? Adorámos.

Havia que discutir política usando autores como Steinbeck e Caldwell à mistura com Hobbes e Burke e discutir política do género usando autores como Baldwin e Steinem. Havia que ver o Holocausto pelos olhos de Ophuls filho (havia o pai, Max) e argumentar colocando na mesma frase os nomes de Goethe e Weimar contra os de Hitler e Goebbels (hoje, à luz da nossa intimidade com o pensamento e o banco alemão, dá muito jeito). Os iniciados citavam Walter Benjamim e Schiller. Entre outros. E falavam do Aufklaurung. Romantismo? Antes o de Lord Byron que o do tolo Bernard Henry-Lévy.

E havia a poesia francesa, desaparecida em parte incerta. Toda a gente sabia o que se tinha passado nas masmorras da Sade e Casanova e entre Rimbaud e Verlaine em Bruxelas (não tinha a ver com subsídios e comissões) e toda a gente tinha lido "As iluminações" e "As flores do mal" (este é Baudelaire). Toda a gente tinha escolhido entre o "Prufrok" de Eliot e os "Cantos" de Pound (não é parente da moeda), entre a ilegibilidade de Joyce e a xenofobia de amis (o pai). Toda a gente venerava Conrad. E Becket. E Pinter. Toda a gente que quisesse ser moderna, bem entendido. As mulheres bebiam o protofeminismo de Virginia Woolf e os homens que apreciavam mulheres e touradas, caça grossa e boxe, subir o Kilimanjaro e pescar no mar alto, comiam Hemingway às colheradas. Toda a gente sabia, evidentemente, por quem dobravam os sinos (é por nós que eles dobram).

Podia continuar por aí fora mas não quero entrar nessa, como se diz em brasileiro. A nostalgia já não é o que era, dizia a Simone Signoret. Teria de falar da educação francesa pelos filmes de Duras e da educação sentimental pelos livros do Scott Fitzgerald. Teria de falar do Kubrick e do Fassbinder. Do Cézanne e do Gauguin. Do Van Gogh e do Monet. Não quero maçá-los.

Chamava-se cultura europeia. Os americanos praticavam-na (Henry James anyone?). Com a marca do modernismo e da "angst" e solipsismo do século XX. Sartre e Camus, Kafka e Musil. Thomas Mann. Tínhamos de subir "A Montanha Mágica". A cultura europeia, como bem escreveu o checo Milan Kundera, era na matriz uma cultura literária, a dos inventores do romance (já sei que os chineses tiveram romance uns séculos antes de Rabelais mas não sabem quem é o Homero e estou um bocado farta de chineses).

O último filme ("Meia-noite em Paris") de um judeu culto de Nova Iorque, educado pela cultura europeia (e, sendo judeu, parte construtiva dessa cultura), é uma homenagem irónica ao mundo extinto. À nostalgia (oh diabo, e os italianos? O "Amarcord" do Fellini? O Visconti? O Rosselini?). Extinto pela tecnologia, que é arrogantemente ignorante, e pela crise, que nos faz perder horas a coçar a cabeça à procura de tostões e a pensar que os economistas financeiros são pessoas com importância (leia Pessoa). Eu sei que a cultura já não é o que era. Deixemos que um bando de cretinos mande em nós. Cretinos? A definição é de Michel Houellebecq em "la carte et le Territoire". Talvez o último romance europeu do último romancista europeu.


Clara Ferreira Alves, in Única (24-09-11)

11 setembro 2011

Reflexões sobre as “Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do Séc. XIX” – Anthero de Quental





Prólogo – Uma Nota Pessoal







Atendendo ao endereço deste blog (Bom Senso e Bom Gosto), tendo em conta a vocação filosófica dos meus co-autores, e considerando que hoje – 11 de Setembro – conta-se 120 anos da morte de Antero de Quental sinto-me incitado a escrever sobre aquele que considero ser a figura mais luminosa do nosso pensamento filosófico (para já não falar do literário, político e cultural).
Com Anthero (como gosto de escrever) partilho a concepção do universo e da história, o socialismo ético e assumidamente utópico, o pessimismo e o drama da vida, a genética de um pensamento insular marcado por nostalgias antropológicas e psicológicas que nos impelem, a todo o momento, querer sair da ilha e voltar a ela.
Quem me conhece sabe o que Anthero representa na minha vida. Ele marcou profunda e indelevelmente, como nenhum outro, o que sou e no que me tornei. Sou filho de Anthero, tal como o sou de meu pai e de minha mãe. Talvez até mais…
Ao ler (ou reler) Anthero fico sempre com a noção da nossa tremenda pequenez: como povo e como indivíduos. Deixarei, pois, neste blog, a jeito de teimosia da sua memória, um conjunto de textos que propõem uma reflexão sobre “Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do Séc. XIX” com incursões pela sua poesia, ou não fosse Anthero “um poeta filósofo” (e não um filósofo poeta).
É um atrevimento, bem sei… Na verdade, o pudor e o medo de cair num certo pretensiosismo quase impediu que publicasse o que agora aqui trago. Mas o excesso de notícias sobre um outro 11 de Setembro e o ignorar completo dos 120 da morte do maior português de todos os tempos por parte dos media, impelem-me a arriscar na libertação de todos os complexos e, pelo menos aqui, não deixar que o esqueçamos.
As Tendências são, como se sabe, um Ensaio filosófico, publicado em 3 artigos na Revista Portuguesa, em 1890, como trabalhos preparatórios de uma obra final que Anthero, lamentavelmente, nunca chegou a produzir. Nesta obra Anthero aprecia a orientação das correntes de pensamento suas contemporâneas, como o hegelianismo e o positivismo, as quais, de um modo geral, à antiga concepção da realidade como emanação de um ser absoluto opõem a noção de uma realidade in fieri, um ser em potência, que se vai organizando teleologicamente, numa evolução progressiva, comum à história do Homem e à história do pensamento. Anthero contesta essas doutrinas, porquanto ignoram o papel da consciência individual, da força do espírito: "Uma ideia instintiva lateja surdamente, como uma pulsação de vida, nesse universo que a ciência mede e pesa, mas não explica: é a aspiração profunda de liberdade, que abala as molas estelares como agita cada uma das suas moléculas, que anima o protoplasma indeciso como dirige a vontade dos seres conscientes. É esse fim soberano, realizado em esferas cada vez mais largas, que torna efectiva a evolução das coisas."

I – Contexto e propósito de as “Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX”
Pressionado dum lado pelo progresso e avanço das ciências modernas, cujos enunciados e resultados alcançados não se prestavam a ser ignorados; pressionado, por outro lado, por toda uma inclinação metafísica revista nos sistemas do idealismo alemão, parecia a Anthero necessário conciliar estas tendências, aparentemente opostas e negando-se mutuamente. Ou bem que se encara o universo como algo mecânico e determinado por um conjunto de leis funcionais; ou bem que se encara o universo como algo espiritualizado, reflexo de uma realidade mais profunda que o fenómeno que se dá em matéria.
Ambas as concepções perdiam na sua exclusividade; optar por uma ou por outra deixava sempre algo de fundamental por explicar.
As ciências, descrevendo o mais possível o mundo fenoménico, esquecem o sentido geral e final desse mesmo mundo. Mais, ignoram ou pretendem esquecer esse fenómeno interno que não é explicado por nada que é a consciência humana.
Quanto às explicações filosóficas, especialmente as do idealismo alemão pós-Kantiano, deixavam por explicar a realidade física integrando-a num esquema rígido de desenvolvimento pré-estabelecido e espiritual, retirando dignidade às ciências positivas que, elas sim no terreno, poderiam melhor que ninguém explicar. Mas mais, a vida humana não se reduz nem se encadeia como um sistema metafísico, segundo rigorosas deduções lógicas; é mais complexa e viva do que isso.
Conciliar ambas as tendências antagónicas do desenvolvimento intelectual permitindo uma síntese – seria essa a aspiração fundamental de Anthero. Fzê-lo sem atraiçoar os princípios fundamentais de ambos os movimentos, seria o seu princípio. A ideia fundamental de todo o processo será a ideia de dinamismo físico, do outro dinamismo (na designação Antheriana: força). Assim, dum lado dinamismo físico, do outro dinamismo metafísico ou espiritual, sem deixarem de ser dois tipos de dinamismo diversos, poderão ainda concentrar-se?
A resposta será positiva e o processo desenrola-se de forma indutiva (secundando o processo científico de abordagem da natureza). Após definição da tarefa filosófica, na 1.ª parte das Tendências, e de apresentação das ideias vectoriais do pensamento moderno, segue-se o modo como quer as ciências quer a filosofia antecipam, por assim dizer, um acordo superior, uma conciliação de pontos de vista (não sem assinalar as incompletudes de cada uma). Finalmente, e na 3.ª parte, a apresentação do novo espiritualismo, solução de compromisso assinaladamente inspirada em Kant e na renovação do velho espiritualismo.
As influências do pensamento de Anthero são diversas e variadas. Leibniz, Kant, Hegel, Fchte, Hartman, para referir os principais, são alguns dos pensadores cujas linhas gerais de pensamento, quando não da terminologia, podemos de alguma forma rever nas Tendências. Todavia, o esforço desta obra ultrapassa o inventário das circunstâncias intelectuais em que ela se inscreve e filia, na medida em que responde a uma exigência muito humana de interpelação pelo sentido último do homem e do mundo.
O resultado “será, se assim se pode dizer, um espiritualismo idealista, enxertado, para florir e frutificar, no tronco robusto do materialismo. Superior à ciência como ideia e como critério, estará todavia na dependência da ciência, que só lhe fornece a matéria prima que tem de ser elaborada especulativamente(1)”
_____________

Anthero de Quental, Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, Editorial Presença, Lisboa, 1995, pág. 121.

16 junho 2011

A David Mourão-Ferreira




No dia em que se assinalam 15 anos sobre o falecimento do ilustre Professor David Mourão-Ferreira, o Ex Libris comemora a efeméride deixando aqui um dos seus mais belos poemas.


Memória          

Tudo que sou, no imaginado
silêncio hostil que me rodeia,
é o epitáfio de um pecado
que foi gravado sobre a areia.

O mar levou toda a lembrança.
Agora sei que me detesto:
da minha vida de criança
guardo o prelúdio dum incesto.

O resto foi o que eu não quis:
perseguição, procura, enlace,
desse retrato feito a giz
pra que não mais eu me encontrasse.

Tu foste a noiva que não veio,
irmã somente prometida!
— O resto foi a quebra desse enleio.
O resto foi amor, na minha vida.


David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão"


* Fica como sugestão um documentário sobre a vida e obra do autor: http://www.youtube.com/watch?v=oiEnNfUx6d8

04 junho 2011

Novo colaborador

O Ex Libris recebeu mais um colaborador distinto - o meu caro Zé Luís - que vem trazer, com a sua personalidade sui generis, um contributo de valor para este espaço, onde o saber é tido como uma das coisas mais belas e estimáveis. Muito bem-vindo, caríssimo Zé, e obrigado por te juntares a nós!

01 junho 2011

A Eterna Criança

Les Jeunes Baigneuses, Bouguereau (1825-1905)


Com a força do seu olhar intelectual e da sua penetração espiritual cresce a distância e, de certo modo, o espaço que circunda o homem: o seu mundo torna-se mais profundo, avistam-se continuamente estrelas novas, imagens novas e novos enigmas. Talvez tudo aquilo em que o olhar do espírito exercitou a sua sagacidade e profundeza tenha sido apenas um pretexto para este exercício, um jogo e uma criancice e infantilidade. E talvez um dia os conceitos mais solenes, os que provocaram maiores lutas e maiores sofrimentos, os conceitos de «Deus» e do «pecado», não signifiquem, para nós, mais do que um brinquedo e um desporto de criança significam para um velho, - e talvez o «velho homem» tenha, então, necessidade de um outro brinquedo ainda e de um outro desgosto, - por continuar a ser muito criança, eterna criança!


Friedrich Nietzsche, in 'Para Além de Bem e Mal'

29 maio 2011

Trabalhos Suspensos


O Ex Libris anda há já algum tempo sem a dinâmica própria que conheceu aquando da sua criação. A razão disso: o estudo; testes e exames levam-me a não poder escrever nada para o blogue. Contarei apenas retomar essa actividade em finais de Julho, volvido o período de avaliações. Até lá as minhas sinceras desculpas aos leitores deste blogue, mas os deveres da Academia a isso obrigam!
Deixo-vos uma reinterpretação fantástica de Fauré por Bill Evans. Saudações!


21 abril 2011

"Nós e os Clássicos"

Este blogue tinha, como é óbvio, de publicitar aqui esta notícia! Uma excelente iniciativa por parte do Canal SIC, que merece os nosso maiores louvores.


28 março 2011

Nemésio e a Açorianidade

"(...) Quisera poder enfeixar nesta página emotiva o essencial da minha consciência de ilhéu. Em primeiro lugar o apego à terra, este amor elementar que não conhece razões, mas impulsos; e logo o sentimento de uma herança étnica que se relaciona intimamente com a grandeza do mar.
Um espírito nada tradicionalista, mas humaníssimo nas suas contradições, com um temperamento e uma forma literária cépticos, - o basco espanhol Baroja, - escreveu um livro chamado Juventud, Egolatria 'O ter nascido junto do mar agrada-me, parece-me como um augúrio de liberdade e de câmbio'. Escreveu a verdade. E muito mais quando se nasce mais do que junto do mar, no próprio seio e infinitude do mar, como as medusas e os peixes (...)
Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os actos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quási religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água (...)

Vitorino Nemésio, in Revista Insula, 1932




Vitorino Nemésio. Um nome maior da Cultura em Portugal, um vulto verdadeiramente, um homem genial, quiçá por isso, também incompreendido. Decidi hoje escrever sobre esta figura incontornável porque, desde que o recordei na Cerimónia dos 100 anos da Universidade de Lisboa - num breve excerto sobre o seu inolvidável ,e tão desconhecido hoje, programa televisivo Se bem me lembro - ficou-me na memória e urge que neste espaço eu lhe renda a mais sincera homenagem. Lamento profundamente que tal programa hoje não passe numa RTP Memória e seja dado a conhecer às gerações de hoje, mesmo até à minha geração, que desconhecerá, na sua maioria, a figura maior deste ilustre escritor,poeta e intelectual. Nemésio marcou indelevelmente o panorama literário e cultural portugueses.
Nascido nos Açores, este grande escritor português de vocação europeia foi quem melhor sintetizou, no conjunto da sua obra literária, o produto histórico de cinco séculos de vivência humana no meio de mar e de solidão, de vulcões e de tempestades, que ele um dia designou por açorianidade e que nós, irremediavelmente, identificamos como a nossa alma. Para Nemésio – e para nós, açorianos, através das palavras dele –, a geografia «vale outro tanto como a história [...]. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar».
A preocupação de Vitorino Nemésio de resolver pela escrita as suas preocupações de escritor em busca das suas raízes revelou-se extremamente produtiva, sobretudo através da sua memorável obra Mau Tempo no Canal. Na sua vasta obra literária pontificam ainda outros títulos fundamentais, todos eles espelho, de algum modo, daquilo que o conceito de açorianidade encerra. Dir-se-ia que na obra de Nemésio, como num búzio, ouvimos a açorianidade.Vitorino Nemésio havia deixado a sua ilha natal -Terceira - para estudar no Continente, primeiro em Direito, depois em Letras, vindo esporadicamente à terra que o viu nascer, sendo que num desses retornos acompanhou Raúl Brandão na viagem que este empreendeu aos Açores, em 1924.
Mas falemos da açorianidade, neologismo que Nemésio haveria de criar.Em 1932 a revista Insula, editada em Ponta Delgada, dedicava o seu número 7-8 (Julho-Agosto) à comemoração do V centenário do descobrimento dos Açores e Nemésio aparecia aí com uma breve colaboração intitulada exactamente “Açorianidade”. Este texto, que assinalava a entrada em circulação do neologismo tem constituído um ponto de referência no âmbito dos estudos nemesianos, em termos do que poderemos entender como um “pensamento insular” (arquipelágico, se quisermos lançar pontes a Edouard Glissant) que por diversos modos e tempos se vai formalmente estabelecendo e, no mesmo passo, enforma boa parte da escrita ficcional do autor. É pois essa efeméride e as respectivas celebrações que o levam a trazer a público uma reflexão sobre a condição insular açoriana, enquanto realidade cujas origens históricas entroncam directamente nos descobrimentos quatrocentistas. Fugindo àquilo que já uma vez referira como “os hinos à terra, no estilo das caravelas e das cruzes de Cristo dos cinzeiros” , Nemésio prefere falar da sua “consciência de ilhéu”, e por isto há-de entender-se o particular modo de ver e sentir o mundo, em íntima relação com a percepção e a vivência do espaço (sintomaticamente, a enunciação singular do eu dará lugar ao colectivo nós). Se é certo que em “Açorianidade” Nemésio põe lado a lado o contributo da história e o da geografia na formação do homem açoriano e da sua mundividência, com a reconhecida afirmação de que “a geografia, para nós, vale outro tanto como a história”, não é menos verdade que aí o autor se ocupa muito mais dos aspectos atinentes ao espaço, à geografia, que ajudaram a moldar e diferenciar esse português de Quatrocentos que deixou a casa histórica peninsular para nunca mais regressar o mesmo, como escreveria o Professor Eduardo Lourenço.
Não será de mais repetir-mo-nos, referindo Mau Tempo no Canal - livro enformado em maciça medida por essa açorianidade e pelas suas características- o que faz dele uma obra universal. É uma sociedade pequena e centrada na cidade da Horta, que vive todos os traumas sentidos pelo seu tempo, que nos é descrita magistralmente pelo autor. Como nos diz Machado Pires - grande estudioso de Nemésio e seu discípulo - a universalidade do romance resulta da vivência humana, da dramaticidade da condição do ser ilhéu. E essa condição redime tudo; não há um regionalismo no sentido empobrecedor. O que é geograficamente regional transforma-se em universal por uma vivência humana. Ele (Nemésio) promoveu de tal maneira o que se passa nos Açores que entrou para o grande padrão da condição humana.
Bastará portanto, como também diz Machado Pires, Mau Tempo no Canal para impor um grande escritor. E Nemésio foi-o efectivamente: um grande escritor, um grande erudito, um grande homem das letras. Por tudo isto, que ficará sempre aquém do que em justiça se poderia e deveria dizer de melhor sobre o autor e a sua obra, expresso o desejo profundo de que a obra de Vitorino Nemésio integre os programas liceais, pela sua indiscutível importância e contributo para a formação intelectual do jovem, futuro cidadão. Fortemente marcado pelas suas raízes insulares, pela vida açoriana, pelas recordações da sua infância e ainda pela profunda humanidade face à existência e ao sofrimento da vida humana, Nemésio será sempre um marco indelével da nossa Cultura e um nome a conhecer pela eternidade dos seus escritos.

27 março 2011

A Evolução: Breve apontamento sobre os antecedentes gregos da explicação da Origem do Homem




Que a ideia de evolução da espécie em Darwin não é propriamente original é um facto estabelecido. Para obter a prova, investiguem-se as pesquisas de Anaximandro de Mileto e de Empédocles de Agrigento sobre o mesmo assunto, nos séculos VI e V a.C., respectivamente.
Ficheiro:Anaximander.jpgAnaximandro, contemporâneo de Tales de Mileto, dizia, segundo nos conta Pseudoplutarco, “que no começo o homem nasceu de seres de uma espécie diferente; porquanto os outros seres em breve se sustentam a si próprios, ao passo que só o homem carece de amamentação prolongada. Por esta razão, ele não teria sobrevivido, se tivesse sido esta a sua forma original.”
O argumento de Anaximandro é simples: os seres humanos, na sua forma actual, sobrevivem através de gestação prolongada e de um período de lactação demorado, que não permitiria a sua subsistência numa fase primitiva, sem qualquer protecção. A observação é inteligente, e a solução sugerida relembra algumas das teorias mais recentes sobre a origem da espécie humana: o homem teria sido criado numa espécie de peixe, até que pudesse subsistir pelos seus meios, momento em que abandonara a água e começara a habitar a terra.

Ficheiro:Empedocles in Thomas Stanley History of Philosophy.jpg

Por seu lado, Empédocles de Agrigento, introduziu na explicação da origem do homem o conceito de aleatoriedade evolutiva e de sobrevivência do mais apto. No princípio do mundo, sugeriu ele, o acaso teria formado, a partir de matéria primordial, membros e órgãos isolados, como braços sem ombros, cabeças sem corpos, etc. Num estágio seguinte, esses fragmentos de corpos juntaram-se e formaram monstruosidades: “raça bovina com rostos humanos”, “descendência humana com cabeças de boi”, segundo narra Eliano. Dentre essas criaturas, apenas as que eram mais aptas sobreviveram e vieram a dar origem à espécie humana.

13 março 2011

A CAUSA DAS COISAS - Miguel Esteves Cardoso



Comprei recentemente um livro de Miguel Esteves Cardoso -
A causa das coisas - por manifesta curiosidade e porque, não encontrando nada mais que me chamasse a atenção na livraria, achei que seria interessante. Do autor apenas conhecia uma ou outra citação memorável perdida em algum livro ou blogue. É impossível não ficar impressionado com a capacidade que Esteves Cardoso tem de nos definir enquanto povo que só sabe falar mal de si próprio. Desdenhar o que se tem e elogiar o que têm os outros - mas sem querer trocar - é a principal característica do aristocrático povo português. Miguel Esteves Cardoso é genial quando nos pinta o retrato. A causa das coisas é disso mesmo exemplo, reunindo cerca de 100 crónicas escritas pelo autor ao longo dos anos para o jornal Expresso. É justamente uma dessas crónicas que deixarei aqui transcritas e que muito prazer me deu ler.


Portugalite


Entre as afecções de boca dos portugueses que nem a pasta medicinal Couto pode curar, nenhuma há tão generalizada e galopante como a Portugalite. A Portugalite é uma inflamação nervosa que consiste em estar sempre a dizer mal de Portugal. É altamente contagiosa (transmite-se pela saliva) e até hoje não se descobriu cura.

A Portugalite é contraída por cada português logo que entra em contacto com Portugal. É uma doença não tanto venérea como venal. Para compreendê-la é necessário estudar a relação de cada português com Portugal. Esta relação é semelhante a uma outra que já é clássica na literatura. Suponhamos então que Portugal é fundamentalmente uma meretriz, mas que cada português está apaixonado por ela. Está sempre a dizer mal dela, o que é compreensível porque ela trata-o extremamente mal. Chega até a julgar que a odeia, porque não acha uma única razão para amá-la. Contudo, existem cinco sinais — típicos de qualquer grande e arrastada paixão — que demonstram que os portugueses, contra a vontade e contra a lógica, continuam apaixonados por ela, por muito afectadas que sejam as «bocas» que mandam.

Em primeiro lugar, estão sempre a falar dela. Como cada português é um amante atraiçoado e desgraçado pela mesma mulher, é natural que se junte aos demais para chorar a sua sorte e vilipendiar a causa comum de todos os seus males. Assim sempre se vão consolando uns aos outros. Bebem uns copos, chamam-lhes uns nomes, e confortam-se todos com o facto de não sofrerem sozinhos. Às vezes, para acentuar a tristeza, recordam-se dos bons velhos tempos em que Portugal, hoje megera ingrata que se vende na via (e na vida) pública, era uma namorada graciosa e senhora respeitada em todos os continentes. E, quando dez milhões de lágrimas caem para dentro do vinho tinto que seguram nas mãos, todos abanam as cabeças, dizendo em uníssono «e hoje é o que se sabe...».

Não é só o facto de não saberem nem poderem falar noutra coisa que prova a existência duma paixão. Como qualquer apaixonado arrependido, o português acha Portugal má como as cobras, mas... lindíssima. O facto de ser tão bonita de cara (as paisagens, as aldeias, a claridade, o clima) só torna a paixão mais trágica. O contraste entre a beleza à superfície e a vileza subterrânea dá maior acidez às lágrimas. É por isso que só há um tabu naquilo que se pode dizer de Portugal. Pode dizer-se que é bárbara e miserável, traiçoeira e ingrata, e tudo o mais que há de aviltante que se queira. O que não se pode dizer é «Portugal é um país feio». Nunca. Também neste aspecto se comprova a paixão.

Em terceiro lugar, os portugueses só deixam que outros portugueses digam mal de Portugal. Só quem sofreu nos braços dela (e que ela vai tratando ignobilmente a seu bel-prazer, por saber que nunca lhe hão-de fugir), se pode legitimamente queixar. Isto porque Portugal, sendo uma lindíssima meretriz, engata os estrangeiros descaradamente, desfazendo-se em encantos e seduções para com eles. Esta ideia exprime-se no dogma nacional que reza «Isto é bom é para os turistas», como quem diz «A viciosa da minha mulher a mim não me dá nada, mas atira-se a qualquer estranho que lhe apareça à frente». Qualquer estrangeiro que tenha a ousadia e o mau gosto de se fazer esquisito frente aos avanços despudorados de Portugal está condenado ao maior desagrado de todos.

Esta atitude é lógica, porque só há uma coisa pior do que se ser atraiçoado por quem se ama — é não se ser atraiçoado só porque o outro a acha feia e não a quer. À traição da mulher junta-se o insulto do outro, ao não achá-la sequer digna de um pequenino adultério. É como dizer-nos: «Não só estás apaixonado por uma pega, como ela é feia como breu.»

Os estrangeiros que nos visitam nunca compreendem isto. Lêem e ouvem dizer por todo o lado as maiores infâmias acerca de Portugal e não percebem porque é que todos lhe caem em cima no momento em que ele se atreve a dizer que um pastel de nata não está fresco, ou que tem a impressão de ter sido enganado no troco por um motorista de táxi.

Em quarto lugar, apesar do português passar o tempo a resmungar e a queixar-se quando está perto de Portugal, sabe-se o que lhe acontece quando está há muito tempo longe dela. Os grunhidos transformam-se em gemidos e as piscadelas de olho já não vencem senão lágrimas. E pensa invariavelmente: «Portugal é uma bruxa, mas antes mal tratada por ela do que bem por outra donzela...»

Em quinto e último lugar (e o «Quinto» não é fortuito), temos a derradeira prova da paixão do português por Portugal. Tem a ver com a ideia que ele tem do que Portugal podia ser. Para cada português, «isto podia ser o melhor país do mundo se...» (Segue-se uma condição invariavelmente impossível de se cumprir). A miragem deste país potencial é um paraíso que agrava substancialmente o inferno que os portugueses já supõem aturar. Isto porque os portugueses graças a Deus, têm expectativas elevadíssimas. Nada abaixo do Quinto-Império pode garantir satisfazê-los. Nenhum português se contenta, por exemplo, só com pertencer à Europa. Aliás, só começaria a contentar-se caso fosse a Europa toda a pertencer a Portugal. (E mesmo assim, qual não seria o português, com um cepticismo que provém de um longo e civilizadíssimo cansaço cultural, que não desconfiasse logo que «isto agora da Europa pertencer a Portugal traz água no bico, com certeza...?»)

Estas expectativas insaciáveis revelam-se na saudável mania que têm os portugueses de comparar Portugal só com a pequena minoria de países que se encontram em muito melhor situação. Para um português, Portugal é o país mais pobre do mundo. Isto é, do mundo «que interessa». Se lhe falarmos nos demais 75% que estão piores que nós, diz logo: «Está bem, mas isso nem se fala...» Nem é preciso ser a Nicarágua ou o Bangladesh — basta mencionar a Grécia ou a Turquia para ele se virar para nós com ar despeitoso e incrédulo e dizer: «Ó filho, está bem, mas isso...»

É curioso notar que a Espanha goza de um estatuto especial nestas comparações. Nem conta como «melhor» nem «pior». A Espanha é sempre até, e a frase «Até na Espanha...» tem o significado precioso de chamar a atenção para um país reconhecidamente rasca onde, neste ou naquele aspecto, já estão escandalosamente melhores do que em Portugal. De qualquer modo, os espanhóis não são como nós. Acham, por exemplo, que é motivo de orgulho ser-se espanhol. Nisso pelo menos, estão muito piores que nós. Entretanto, compreende-se que o difícil não é amar Portugal — o difícil é deixar de amá-lo, também porque é sempre difícil nós sermos felizes.


Miguel Esteves Cardoso, in 'A Causa das Coisas'

11 março 2011

O “Socialisme” de Godard

Jean-Luc Godard dispensa apresentações. O cineasta franco-suíço é um dos principais nomes da "Nouvelle Vague", assumidamente vanguardista, polémico, ágil e original quer na substância, quer na forma. Um homem do Maio de 68 que não saiu nem da ética, nem da estética desconstrutiva e provocadora que caracterizou esta geração. Um homem que insiste em demonstrar as perplexidades e contradições do século XX e que teima em provar que nenhuma verdade absoluta é absolutamente verdade.
É, pois, deste espírito irrequieto que nasce o "Film Socialisme”.
Com estreia nacional em Serralves a 6 de Março, pensei – mais uma vez – que não iria ter oportunidade de o assistir, periférico que estou (por livre escolha) no meio do Atlântico. Mas não… Ando cada vez mais enganado a este respeito. A periferia cultural dos Açores é, de facto, cada vez menor! E isto deve-se ao esforço não só de entidades públicas, como à persistente carolice de alguns. Desta feita, é ao “9500 CineClube de Ponta Delgada” que devo a possibilidade de ver este filme. Aqui fica o meu reconhecimento à instituição que há um ano vem fazendo o que muitos achavam impossível. Bem-haja!
Mas vamos ao que interessa: ao filme.
O filme é uma colagem de imagens, que nos remete para uma abordagem de “associação livre das ideias” ao estilo psicanalítico. A partir de um cruzeiro, que funciona como centro do mundo e da história, Godard vai propondo a rediscução de significados através de frases e imagens… Vão surgindo temas – política, Médio-Oriente, liberdade, igualdade, fraternidade – a partir de pequenas cenas sem grande nexo causal entre si, interrompidas por textos de diversos autores e em diversas línguas (do francês ao espanhol, do inglês ao alemão, do latim ao árabe…). No meio deste processo e tratando-se de um filme de duração de cerca de 100m, parece-me que Godard exige demais do espectador e não consegue discutir o que se propôs discutir: socialismo.
Enfim, tenho de confessar que fiquei um bocadinho decepcionado com o filme (sobretudo porque é de Godard que estamos a falar e o tema escolhido era aquele e não outro…).
Mas, ainda assim, acho que o filme vale a pena, enquanto poema visual, e que é digno de registo no contexto do cinema de autor que se produziu na Europa nos últimos tempos.

31 janeiro 2011

Do Alvorecer do Barroco: sobre a Obra do Grande Mestre Caravaggio

Torna-se uma tarefa por demais árdua expor num breve texto a verdadeira revolução que conhecerá ao longo de dois séculos o pensamento europeu, e apenas esse pensamento, sublinhe-se. No século XVII verificou-se uma ofensiva contra o princípio da autoridade. No século XVIII, esta ofensiva parece ter triunfado em todo o lado. Note-se o que escreveria o historiador inglês Norman Hampson, na sua obra O Século das Luzes: “ O horizonte intelectual da maioria das pessoas cultas da primeira metade do século XVIII era dominado por duas fontes de autoridade quase incontestadas: os textos sagrados e os clássicos. Cada uma à sua maneira perpetuava a ideia de que a civilização tinha degenerado a partir de uma Idade de Ouro”. A preocupação mais racional do homem contemporâneo residia, por conseguinte, em estudar os antigos, felizes por regressarem ao tipo de sociedade que estes haviam conhecido. Os movimentos europeus – o Renascimento e a Reforma – tinham reforçado esta atitude e a autoridade dos textos sagrados. O Renascimento e a pedagogia humana tinham-se baseado amplamente numa renovação dos estudos gregos e latinos. Hampson refere-se à “ardente veneração de tudo o que se sentia pelos clássicos”.

No século XVIII, a principal característica reside assim na ofensiva vitoriosa contra o princípio da autoridade; seja qual for o vigor crítico do espírito humano, este, face ao desconhecido, tem necessidade de apoios, de tutores. Partindo do princípio de que a civilização dos Antigos foi perfeita, a verdade está contida nos seus escritos: Aristóteles para a filosofia, os gregos Hipócrates e Galeno para a medicina; Vitrúvio para a arquitectura, etc. Até mesmo no teatro irá descobrir-se na Antiguidade uma “regra das três unidades”, de lugar, de espaço e de tempo, sem a qual a peça não seria boa. A resistência aos Antigos surge como relativamente anódina em matéria de arte e literatura. É, pelo contrário, significativa no domínio científico. Ora, se é inegável que, no campo artístico, os Antigos e especialmente os Gregos são autores de obras-primas esculturais e arquitectónicas inultrapassáveis, nada prova que fosse impossível igualá-los, seguindo outras vias. Os homens chegaram, obscuramente, a esta conclusão. Enquanto a arte renascentista tentava, em certa medida, um retorno Às linhas antigas, assistiu-se ao nascimento, no século XVI, de um novo estilo artístico: o Barroco. O estilo barroco nasceria em Itália, a partir das experiências maneiristas de finais do século XVI, e viria a expandir-se rapidamente para outros países europeus, com manifestações na Arquitectura – sobretudo aí – e na literatura, na Ciência e nas artes plásticas e decorativas. Ora, sem prejuízo, de as outras manifestações serem de um interesse fascinante, centrar-nos-emos apenas nas artes plásticas, vulgo, na pintura, onde sobressai um nome que todos conhecemos, lapidar em toda a arte pictórica barroca: Caravaggio.

Pintor italiano, Michelangelo Merisi ficou conhecido como Caravaggio, o nome da aldeia onde nasceu em 1573, situada perto de Milão. Ficaria famoso pelas pinturas religiosas nas quais o contraste entre a luz e sombra na modelação dos corpos e dos espaços introduz uma atmosfera dramática de intensa espiritualidade. O Tocador de Alaúde e A Cigana que prevê o Futuro contam-se entre os seus primeiros trabalhos, encomendados pelo Cardeal Francesco del Monte. A maturação do seu estilo começou com a decoração de uma capela em S. Luigi dei Francesi, em Roma, que provocou controvérsia. Os modelos das suas composições eram figuras vulgares, camponeses e membros das classes mais baixas. O realismo, a ousadia, a originalidade com que representava cenas religiosas levou à rejeição da obra pelo clero. A versão finalmente aceite de S. Mateus e o Anjo data de 1599. As primeiras versões de O Martírio de S. Pedro e A Conversão de S. Paulo, pintadas na capela de Santa Maria del Popolo em 1600, foram igualmente rejeitadas. A irreverência que caracterizava a sua obra fazia igualmente parte do seu carácter. Turbulento e desordeiro, viu-se obrigado a fugir à justiça em 1606, partindo para Nápoles. O seu périplo, assinalado por disputas e vinganças, conduziu-o de Nápoles a Malta, depois à Sicília e novamente a Nápoles, onde foi gravemente ferido. Acabou por morrer, em 1610, num pequeno porto toscano com um ataque de malária, contraída durante uma passagem pela prisão local, vítima de um mal-entendido. As últimas obras, realizadas em Malta e na Sicília, acentuam a simplicidade das formas e o poder dramático criado pelo contraste entre a luz e sombra. A sua influência é sobretudo assinalável nos artistas flamengos e holandeses, o que inclui Rubens e até Rembrandt e os pintores da escola de Utrecht. Vai ainda influenciar a pintura espanhola, designadamente Velásquez e Murillo.

A atitude artística de Caravaggio é de franca rebeldia em face dos convencionalismos da época. O estranho realismo do pintor consiste não em copiar e observar a natureza, mas em contrapor o valor moral da prática ao valor intelectual da teoria. O aspecto mais notável da sua obra é – como dissemos - o tratamento da luz, que recebe o nome de tenebrismo. Consiste em projectar a luz sobre as formas com violência e em contraste intenso e brusco com as sombras. O seu precoce domínio dos efeitos claro-escuro viria marcar o início de uma das grandes conquistas da pintura barroca. Outra característica primordial do estilo caravaggiano é o naturalismo exacerbado como reacção face ao idealismo renascentista. Naturalismo que, por outro lado, não está em duelo com a grandiosidade da composição. A este interesse naturalista respondem quadros de costumes como Mulher a Tocar o Alaúde e Jogadores de Cartas, pintados na sua primeira época. A plenitude do seu estilo encontrar-se-á em cenas religiosas que trata com um naturalismo e um realismo quase insolentes. Tal é o caso de O Santo Enterro e de O Enterro da Virgem. Nesta última obra, a figura da Virgem é inspirada no cadáver de uma mulher afogada no Tibre e com o ventre inchado. A exposição pública deste quadro numa igreja choca com o gosto classicista imperante em Roma e tem que ser retirado. A influência de Caravaggio sente-se poderosamente em Itália e no resto da Europa durante todo o século XVII, e os seus seguidores continuam a cultivar o tenebrismo e o naturalismo no século seguinte.

Concluiremos portanto que Caravaggio se distingue enquanto artista enigmático, fascinante e até perigoso. Tomando emprestada a imagem de pessoas comuns das ruas de Roma para retratar Maria e os apóstolos, tal facto não poderia deixar de ser imensamente polémico e controverso. Talvez tenha sido um dos primeiros artistas a saber conciliar a arte com o “ministério de Jesus”, que aconteceu exactamente entre pescadores, lavradores e prostitutas. Levou esse princípio estético às últimas consequências, a ponto de ter sido acusado de usar o corpo de uma prostituta retirada morta do rio Tibre, para pintar A Morte da Virgem. Esta foi, portanto, uma das duas mais importantes características das suas pinturas: retratar o aspecto mundano dos eventos bíblicos, usando o povo comum das ruas de Roma. A outra característica marcante foi a dimensão e o impacto realista que deu aos seus quadros, ao usar um fundo sempre obscuro, muitas vezes totalmente negro, e agrupar a cena em primeiro plano com um foco intenso de luz sobre os detalhes, geralmente os rostos. Este uso de sombras e luz é uma das coisas mais marcantes nos seus quadros que - de algum modo - nos atrai para dentro da cena. Não só a acção é dramática como também o modo como tal nos é dado ver, como a própria acção é montada. Repare-se na teatralidade dos gestos e no contraste cromático. Todos estes elementos convergem para a construção no sentido de espectáculo. Tudo isto faz da obra de Caravaggio uma obra absolutamente extraordinária e fascinante, que nos deslumbra ante cada quadro. Espero pois - numa viagem que empreenderei em breve a Londres – deleitar-me com algumas das suas pinturas, presentes na National Gallery, esperança essa que me levou desta vez a escrever sobre este Grande Mestre.


Os quadros que surgem ao longo do texto têm os seguintes títulos( por ordem de aparição):

1. Retrato de Caravaggio;

2.A Ceia em Emaús, de 1601;

3.O Tocador de Alaúde, de 1595;

4.Deusa da Boa Ventura, produzida entre 1595-1598;

5. Baco;

6. A coroação com espinhos, produzida entre 1602-1604;


29 janeiro 2011

Revisitar Sophia



Sophia foi, como já dissemos noutras circunstâncias, com a sua escrita e o seu exemplo, uma referência forte que fica para além dos jogos de palavras e das circunstâncias. "Depois de tantos séculos de pecado burguês, a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo não aprendeu a ceder aos desastres. Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa" (Arte Poética III, 1964). Todos quantos se cruzaram com Sophia, são unânimes em reconhecer que a capacidade criadora e a sensibilidade artística excepcionais
se aliaram sempre a uma inteligência política arguta. Os seus discursos políticos mostram-no. Os seus combates recusavam a ambiguidade. “No Centro Nacional de Cultura fiz de tudo” – confessa-nos. Então “discutia-se tudo: os sistemas políticos, os problemas sociais, os problemas religiosos, o Corbusier, a pintura moderna, o surrealismo, o Fernando Pessoa, a literatura portuguesa, a literatura brasileira, a literatura americana, a guerra de África. À discussão cada um trazia o que sabia e também o que era”. “Às vezes a polícia política (PIDE) aparecia: um dia fez uma busca à procura de uns papéis que não encontrou porque o Francisco os tinha escondido no frigorífico”. E, afinal, nada era fácil, uma vez que não passava despercebido que “em certas sessões surgiam homens cinzentos e calados, com a gabardina abotoada até ao queixo e um ar simultaneamente taciturno e comprometido: ‘poker faced’”. E lembramo-nos do “Mar Novo” de 1958: “Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros usam a virtude para comprar o que não tem perdão / Porque os outros têm medo mas tu não”.


Excerto da alocução do Dr. Guilherme d'Oliveira Martins na abertura do Colóquio Internacional


A assinalar a doação do espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen à Biblioteca Nacional – acto oficial realizado no passado dia 26 de Janeiro – teve lugar, dias 27 e 28 deste mês, na Fundação Gulbenkian, o Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen, promovido e coordenado por Maria Andresen de Sousa Tavares com o apoio do Centro Nacional de Cultura. O colóquio contou com a participação de várias personalidades ilustres, que se têm dedicado de diversas maneiras à obra andreseniana. Entre eles destacaria nomes como Nuno Júdice, José Manuel dos Santos, Paula Morão, Carlos Mendes de Sousa, Frederico Lourenço, Fernando Martinho, António Tabucchi, entre outros não mencionados, mas igualmente notáveis. De todos eles tive ocasião de ouvir comunicações extraordinárias, que deram início a novas abordagens e a novas perspectivas do trabalho, essencialmente, poético de Shopia. Esta era uma oportunidade que jamais poderia perder. Sophia sempre foi, desde a minha tenra idade, a escritora e poetisa que mais me fascinou. Mulher de cultura, solidária, de permanente envolvimento cívico e político, constituiu sempre uma figura fascinante, cuja obra marca indelevelmente a riquíssima Literatura Portuguesa.

A realização deste colóquio vem justamente demonstrar e reafirmar a importância da obra da Autora no panorama literário, não só nacional, mas internacional. De resto, atesta isso mesmo a presença de professores, tradutores e investigadores, europeus e não só, neste encontro. A obra de Sophia continua a ser – e sê-lo-á, estou em crer, ad enternum – digna de estudo e de análise pela sua indiscutível riqueza. A sua prosa é um perfeito deleite, mas é a sua poesia que mais encanta e que mais seduz. Principalmente – e é claro que aqui ressalta a minha veia helenista – a poesia em que a civilização grega constitui uma presença recorrente nos versos de Sophia, através da sua crença profunda na união entre os deuses e a natureza, tal como outra dimensão da religiosidade, provinda da tradição bíblica e cristã.

Sophia admirou profundamente a Grécia, uma Grécia que aparece espelhada na sua obra, seja em poemas que glosam motivos helénicos - figuras históricas, figuras mitológicas, lugares carregados de significado histórico ou mítico -, seja naqueles que, dum modo mais geral, recuperam as noções clássicas de harmonia, inteireza e justiça. O retorno a um tempo arquetípico e primordial, anterior ao “tempo dividido” em que vivemos, é um dos veios fundamentais da obra poética de Sophia, que nele busca uma forma de religação do ser, uma aliança entre o homem e a natureza. As suas sucessivas viagens à Grécia, ao longo da vida, reforçaram esse veio, presente desde o livro Poesia (poemas “Dionysos”, “Apolo Musageta”) e recorrente nos volumes poéticos seguintes. O ensaio O Nu na Antiguidade Clássica, ajuda-nos a compreender melhor a identificação de Sophia com o mundo clássico: embora tenha como objecto a arte grega, e em particular a representação do corpo entre os gregos – assumindo especial importância a figura do Kouros -, pode ser lido como mais uma das “artes poéticas” em que a autora explicita algumas noções fundadoras da sua própria poesia. Isso mesmo viria dizer o Professor Gustavo Rubim, no colóquio, dissertando sobre aquele ensaio da Autora, adjectivando a sua obra de “ densa, tensa e intensa” e falando do Helenismo de Sophia como um elogio do classicismo.

Seria injusto desmerecer todas as outras comunicações feitas no colóquio, elogiando apenas aquelas que se centraram na inspiração clássica da Autora. Mas a verdade é que, não obstante o brilhantismo das novas reflexões sobre a obra andreseniana – o que foi dito sobre a temática clássica na poesia de Sophia, sobre o alimento buscado nas raízes greco-romanas da sua obra, foi de uma elevação ímpar e sublime. Por mais que envidasse um esforço no sentido de uma imparcialidade absoluta na análise deste encontro internacional, não conseguiria alcançar esse objectivo. A minha devoção e entrega totais à Hélade falará sempre mais alto e dominará a todo o momento a minha vida e a minha forma de pensar.

Seria de destacar a comunicação de Antonio Tabucchi -bom conhecedor da cultura grega clássica -, falando de uma viagem especial à Grécia em que revisitou alguns lugares celebrados por Sophia de Mello Breyner - Delfos, Templo de Poseidon, Cnossos, etc. -, revendo-os à luz do sentido simbólico que os versos da Autora lhes atribuíram. Pecará o meu texto por ficar muito aquém no que concerne a traçar um quadro fiel e rigoroso do que foi dito no colóquio. Verdade seja dita também que se me atrevesse a escrever sobre tudo, este texto ficaria maçudo e desinteressante, pelo que – creio – assim ficou mais agradável. Terminarei frisando que foi um verdadeiro êxtase participar neste evento, onde lamentavelmente – e sublinhe-se o advérbio de modo – entre o público jovem a assistir encontrava-me eu, um outro amigo e pouco mais. A esmagadora maioria da audiência era constituída por pessoas mais velhas o que me entristece imenso e é sintomático do quão alheada está a minha geração da Cultura. Perfeitamente desligada - com raríssimas excepções - da literatura, da filosofia, da história, portanto, de tudo que nos enobrece e eleva o espírito e nos alimenta a alma. Queiram os deuses – reunidos em douto concílio – que um dia isto mude e possamos despertar para a importância maior do Cultura e do conhecimento.

Termino, citando os versos lindíssimos do “Minotauro” de Sophia, que com a depuração, o equilíbrio e a limpidez da linguagem poética que marcam a sua obra, haveria de escrever:

“(…)Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto,

Sem jamais perderem o fio de linho da palavra”