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Sophia foi, como já dissemos noutras circunstâncias, com a sua escrita e o seu exemplo, uma referência forte que fica para além dos jogos de palavras e das circunstâncias. "Depois de tantos séculos de pecado burguês, a nossa época rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como Antígona a poesia do nosso tempo não aprendeu a ceder aos desastres. Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa" (Arte Poética III, 1964). Todos quantos se cruzaram com Sophia, são unânimes em reconhecer que a capacidade criadora e a sensibilidade artística excepcionais se aliaram sempre a uma inteligência política arguta. Os seus discursos políticos mostram-no. Os seus combates recusavam a ambiguidade. “No Centro Nacional de Cultura fiz de tudo” – confessa-nos. Então “discutia-se tudo: os sistemas políticos, os problemas sociais, os problemas religiosos, o Corbusier, a pintura moderna, o surrealismo, o Fernando Pessoa, a literatura portuguesa, a literatura brasileira, a literatura americana, a guerra de África. À discussão cada um trazia o que sabia e também o que era”. “Às vezes a polícia política (PIDE) aparecia: um dia fez uma busca à procura de uns papéis que não encontrou porque o Francisco os tinha escondido no frigorífico”. E, afinal, nada era fácil, uma vez que não passava despercebido que “em certas sessões surgiam homens cinzentos e calados, com a gabardina abotoada até ao queixo e um ar simultaneamente taciturno e comprometido: ‘poker faced’”. E lembramo-nos do “Mar Novo” de 1958: “Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros usam a virtude para comprar o que não tem perdão / Porque os outros têm medo mas tu não”.
A assinalar a doação do espólio de Sophia de Mello Breyner Andresen à Biblioteca Nacional – acto oficial realizado no passado dia 26 de Janeiro – teve lugar, dias 27 e 28 deste mês, na Fundação Gulbenkian, o Colóquio Internacional Sophia de Mello Breyner Andresen, promovido e coordenado por Maria Andresen de Sousa Tavares com o apoio do Centro Nacional de Cultura. O colóquio contou com a participação de várias personalidades ilustres, que se têm dedicado de diversas maneiras à obra andreseniana. Entre eles destacaria nomes como Nuno Júdice, José Manuel dos Santos, Paula Morão, Carlos Mendes de Sousa, Frederico Lourenço, Fernando Martinho, António Tabucchi, entre outros não mencionados, mas igualmente notáveis. De todos eles tive ocasião de ouvir comunicações extraordinárias, que deram início a novas abordagens e a novas perspectivas do trabalho, essencialmente, poético de Shopia. Esta era uma oportunidade que jamais poderia perder. Sophia sempre foi, desde a minha tenra idade, a escritora e poetisa que mais me fascinou. Mulher de cultura, solidária, de permanente envolvimento cívico e político, constituiu sempre uma figura fascinante, cuja obra marca indelevelmente a riquíssima Literatura Portuguesa.
A realização deste colóquio vem justamente demonstrar e reafirmar a importância da obra da Autora no panorama literário, não só nacional, mas internacional. De resto, atesta isso mesmo a presença de professores, tradutores e investigadores, europeus e não só, neste encontro. A obra de Sophia continua a ser – e sê-lo-á, estou em crer, ad enternum – digna de estudo e de análise pela sua indiscutível riqueza. A sua prosa é um perfeito deleite, mas é a sua poesia que mais encanta e que mais seduz. Principalmente – e é claro que aqui ressalta a minha veia helenista – a poesia em que a civilização grega constitui uma presença recorrente nos versos de Sophia, através da sua crença profunda na união entre os deuses e a natureza, tal como outra dimensão da religiosidade, provinda da tradição bíblica e cristã.
Sophia admirou profundamente a Grécia, uma Grécia que aparece espelhada na sua obra, seja em poemas que glosam motivos helénicos - figuras históricas, figuras mitológicas, lugares carregados de significado histórico ou mítico -, seja naqueles que, dum modo mais geral, recuperam as noções clássicas de harmonia, inteireza e justiça. O retorno a um tempo arquetípico e primordial, anterior ao “tempo dividido” em que vivemos, é um dos veios fundamentais da obra poética de Sophia, que nele busca uma forma de religação do ser, uma aliança entre o homem e a natureza. As suas sucessivas viagens à Grécia, ao longo da vida, reforçaram esse veio, presente desde o livro Poesia (poemas “Dionysos”, “Apolo Musageta”) e recorrente nos volumes poéticos seguintes. O ensaio O Nu na Antiguidade Clássica, ajuda-nos a compreender melhor a identificação de Sophia com o mundo clássico: embora tenha como objecto a arte grega, e em particular a representação do corpo entre os gregos – assumindo especial importância a figura do Kouros -, pode ser lido como mais uma das “artes poéticas” em que a autora explicita algumas noções fundadoras da sua própria poesia. Isso mesmo viria dizer o Professor Gustavo Rubim, no colóquio, dissertando sobre aquele ensaio da Autora, adjectivando a sua obra de “ densa, tensa e intensa” e falando do Helenismo de Sophia como um elogio do classicismo.
Seria injusto desmerecer todas as outras comunicações feitas no colóquio, elogiando apenas aquelas que se centraram na inspiração clássica da Autora. Mas a verdade é que, não obstante o brilhantismo das novas reflexões sobre a obra andreseniana – o que foi dito sobre a temática clássica na poesia de Sophia, sobre o alimento buscado nas raízes greco-romanas da sua obra, foi de uma elevação ímpar e sublime. Por mais que envidasse um esforço no sentido de uma imparcialidade absoluta na análise deste encontro internacional, não conseguiria alcançar esse objectivo. A minha devoção e entrega totais à Hélade falará sempre mais alto e dominará a todo o momento a minha vida e a minha forma de pensar.
Seria de destacar a comunicação de Antonio Tabucchi -bom conhecedor da cultura grega clássica -, falando de uma viagem especial à Grécia em que revisitou alguns lugares celebrados por Sophia de Mello Breyner - Delfos, Templo de Poseidon, Cnossos, etc. -, revendo-os à luz do sentido simbólico que os versos da Autora lhes atribuíram. Pecará o meu texto por ficar muito aquém no que concerne a traçar um quadro fiel e rigoroso do que foi dito no colóquio. Verdade seja dita também que se me atrevesse a escrever sobre tudo, este texto ficaria maçudo e desinteressante, pelo que – creio – assim ficou mais agradável. Terminarei frisando que foi um verdadeiro êxtase participar neste evento, onde lamentavelmente – e sublinhe-se o advérbio de modo – entre o público jovem a assistir encontrava-me eu, um outro amigo e pouco mais. A esmagadora maioria da audiência era constituída por pessoas mais velhas o que me entristece imenso e é sintomático do quão alheada está a minha geração da Cultura. Perfeitamente desligada - com raríssimas excepções - da literatura, da filosofia, da história, portanto, de tudo que nos enobrece e eleva o espírito e nos alimenta a alma. Queiram os deuses – reunidos em douto concílio – que um dia isto mude e possamos despertar para a importância maior do Cultura e do conhecimento.
Termino, citando os versos lindíssimos do “Minotauro” de Sophia, que com a depuração, o equilíbrio e a limpidez da linguagem poética que marcam a sua obra, haveria de escrever:
“(…)Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto,
Sem jamais perderem o fio de linho da palavra”
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