28 setembro 2011

Para acabar de vez com a cultura


O título é de um livro do Woody Allen. Não creio que ele, ou nós, imaginássemos que quando este livro foi escrito e a palavra cultura era um bilhete de identidade, esse mundo estivesse em vias de extinção. Cresci num mundo, poderia dizer, controlado pela cultura. Comíamos cinema clássico e filmes russos e alemães com sete horas (não eram pera doce), papávamos Bergman ao pequeno-almoço, e ninguém podia chegar à puberdade sem ter lido pelo menos um romance de Tolstoi e Dostoievski, de Stendhal e Flaubert. As meninas tinham de chorar com Alexandre Dumas e a Dama das Camélias e os rapazes tinham de ir aos pássaros e beijar uma Becky Thatcher (não é parente da Mrs.) com a leveza do Tom Sawyer. Passávamos uma tarde a preguiçar com Huckleberry Finn no Mississípi. mark Twain foi um pai para a literatura e para nós. Fomos caçar baleias com Melville.

Tínhamos de saber distinguir entre a sonoridade melancólica de Chopin e a alegria cantante de Mozart, entre quintas e nonas fossem as Beethoven ou as de Mahler. E tínhamos de saber distinguir Cole Porter e Irvind Berlin, John Ford e Howards Hawks. Tínhamos de saber as subtilezas de Nietzsche e Schopenhauer para participar numa discussão onde entrasse a palavra niilismo (e a palavra niilismo estava sempre a romper conversas) e tínhamos de saber a diferença subtil entre o materialismo histórico e o materialismo dialéctico. O cânone e a vulgata. Alguns de nós lemos "Das Kapital" (nunca passa de moda) e outros leram o proibido Livro Vermelho do camarada Mao. Ele há gente para tudo, como dizia o avô Maia. Eu falei n'"Os Maias"? Adorámos.

Havia que discutir política usando autores como Steinbeck e Caldwell à mistura com Hobbes e Burke e discutir política do género usando autores como Baldwin e Steinem. Havia que ver o Holocausto pelos olhos de Ophuls filho (havia o pai, Max) e argumentar colocando na mesma frase os nomes de Goethe e Weimar contra os de Hitler e Goebbels (hoje, à luz da nossa intimidade com o pensamento e o banco alemão, dá muito jeito). Os iniciados citavam Walter Benjamim e Schiller. Entre outros. E falavam do Aufklaurung. Romantismo? Antes o de Lord Byron que o do tolo Bernard Henry-Lévy.

E havia a poesia francesa, desaparecida em parte incerta. Toda a gente sabia o que se tinha passado nas masmorras da Sade e Casanova e entre Rimbaud e Verlaine em Bruxelas (não tinha a ver com subsídios e comissões) e toda a gente tinha lido "As iluminações" e "As flores do mal" (este é Baudelaire). Toda a gente tinha escolhido entre o "Prufrok" de Eliot e os "Cantos" de Pound (não é parente da moeda), entre a ilegibilidade de Joyce e a xenofobia de amis (o pai). Toda a gente venerava Conrad. E Becket. E Pinter. Toda a gente que quisesse ser moderna, bem entendido. As mulheres bebiam o protofeminismo de Virginia Woolf e os homens que apreciavam mulheres e touradas, caça grossa e boxe, subir o Kilimanjaro e pescar no mar alto, comiam Hemingway às colheradas. Toda a gente sabia, evidentemente, por quem dobravam os sinos (é por nós que eles dobram).

Podia continuar por aí fora mas não quero entrar nessa, como se diz em brasileiro. A nostalgia já não é o que era, dizia a Simone Signoret. Teria de falar da educação francesa pelos filmes de Duras e da educação sentimental pelos livros do Scott Fitzgerald. Teria de falar do Kubrick e do Fassbinder. Do Cézanne e do Gauguin. Do Van Gogh e do Monet. Não quero maçá-los.

Chamava-se cultura europeia. Os americanos praticavam-na (Henry James anyone?). Com a marca do modernismo e da "angst" e solipsismo do século XX. Sartre e Camus, Kafka e Musil. Thomas Mann. Tínhamos de subir "A Montanha Mágica". A cultura europeia, como bem escreveu o checo Milan Kundera, era na matriz uma cultura literária, a dos inventores do romance (já sei que os chineses tiveram romance uns séculos antes de Rabelais mas não sabem quem é o Homero e estou um bocado farta de chineses).

O último filme ("Meia-noite em Paris") de um judeu culto de Nova Iorque, educado pela cultura europeia (e, sendo judeu, parte construtiva dessa cultura), é uma homenagem irónica ao mundo extinto. À nostalgia (oh diabo, e os italianos? O "Amarcord" do Fellini? O Visconti? O Rosselini?). Extinto pela tecnologia, que é arrogantemente ignorante, e pela crise, que nos faz perder horas a coçar a cabeça à procura de tostões e a pensar que os economistas financeiros são pessoas com importância (leia Pessoa). Eu sei que a cultura já não é o que era. Deixemos que um bando de cretinos mande em nós. Cretinos? A definição é de Michel Houellebecq em "la carte et le Territoire". Talvez o último romance europeu do último romancista europeu.


Clara Ferreira Alves, in Única (24-09-11)

11 setembro 2011

Reflexões sobre as “Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do Séc. XIX” – Anthero de Quental





Prólogo – Uma Nota Pessoal







Atendendo ao endereço deste blog (Bom Senso e Bom Gosto), tendo em conta a vocação filosófica dos meus co-autores, e considerando que hoje – 11 de Setembro – conta-se 120 anos da morte de Antero de Quental sinto-me incitado a escrever sobre aquele que considero ser a figura mais luminosa do nosso pensamento filosófico (para já não falar do literário, político e cultural).
Com Anthero (como gosto de escrever) partilho a concepção do universo e da história, o socialismo ético e assumidamente utópico, o pessimismo e o drama da vida, a genética de um pensamento insular marcado por nostalgias antropológicas e psicológicas que nos impelem, a todo o momento, querer sair da ilha e voltar a ela.
Quem me conhece sabe o que Anthero representa na minha vida. Ele marcou profunda e indelevelmente, como nenhum outro, o que sou e no que me tornei. Sou filho de Anthero, tal como o sou de meu pai e de minha mãe. Talvez até mais…
Ao ler (ou reler) Anthero fico sempre com a noção da nossa tremenda pequenez: como povo e como indivíduos. Deixarei, pois, neste blog, a jeito de teimosia da sua memória, um conjunto de textos que propõem uma reflexão sobre “Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do Séc. XIX” com incursões pela sua poesia, ou não fosse Anthero “um poeta filósofo” (e não um filósofo poeta).
É um atrevimento, bem sei… Na verdade, o pudor e o medo de cair num certo pretensiosismo quase impediu que publicasse o que agora aqui trago. Mas o excesso de notícias sobre um outro 11 de Setembro e o ignorar completo dos 120 da morte do maior português de todos os tempos por parte dos media, impelem-me a arriscar na libertação de todos os complexos e, pelo menos aqui, não deixar que o esqueçamos.
As Tendências são, como se sabe, um Ensaio filosófico, publicado em 3 artigos na Revista Portuguesa, em 1890, como trabalhos preparatórios de uma obra final que Anthero, lamentavelmente, nunca chegou a produzir. Nesta obra Anthero aprecia a orientação das correntes de pensamento suas contemporâneas, como o hegelianismo e o positivismo, as quais, de um modo geral, à antiga concepção da realidade como emanação de um ser absoluto opõem a noção de uma realidade in fieri, um ser em potência, que se vai organizando teleologicamente, numa evolução progressiva, comum à história do Homem e à história do pensamento. Anthero contesta essas doutrinas, porquanto ignoram o papel da consciência individual, da força do espírito: "Uma ideia instintiva lateja surdamente, como uma pulsação de vida, nesse universo que a ciência mede e pesa, mas não explica: é a aspiração profunda de liberdade, que abala as molas estelares como agita cada uma das suas moléculas, que anima o protoplasma indeciso como dirige a vontade dos seres conscientes. É esse fim soberano, realizado em esferas cada vez mais largas, que torna efectiva a evolução das coisas."

I – Contexto e propósito de as “Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX”
Pressionado dum lado pelo progresso e avanço das ciências modernas, cujos enunciados e resultados alcançados não se prestavam a ser ignorados; pressionado, por outro lado, por toda uma inclinação metafísica revista nos sistemas do idealismo alemão, parecia a Anthero necessário conciliar estas tendências, aparentemente opostas e negando-se mutuamente. Ou bem que se encara o universo como algo mecânico e determinado por um conjunto de leis funcionais; ou bem que se encara o universo como algo espiritualizado, reflexo de uma realidade mais profunda que o fenómeno que se dá em matéria.
Ambas as concepções perdiam na sua exclusividade; optar por uma ou por outra deixava sempre algo de fundamental por explicar.
As ciências, descrevendo o mais possível o mundo fenoménico, esquecem o sentido geral e final desse mesmo mundo. Mais, ignoram ou pretendem esquecer esse fenómeno interno que não é explicado por nada que é a consciência humana.
Quanto às explicações filosóficas, especialmente as do idealismo alemão pós-Kantiano, deixavam por explicar a realidade física integrando-a num esquema rígido de desenvolvimento pré-estabelecido e espiritual, retirando dignidade às ciências positivas que, elas sim no terreno, poderiam melhor que ninguém explicar. Mas mais, a vida humana não se reduz nem se encadeia como um sistema metafísico, segundo rigorosas deduções lógicas; é mais complexa e viva do que isso.
Conciliar ambas as tendências antagónicas do desenvolvimento intelectual permitindo uma síntese – seria essa a aspiração fundamental de Anthero. Fzê-lo sem atraiçoar os princípios fundamentais de ambos os movimentos, seria o seu princípio. A ideia fundamental de todo o processo será a ideia de dinamismo físico, do outro dinamismo (na designação Antheriana: força). Assim, dum lado dinamismo físico, do outro dinamismo metafísico ou espiritual, sem deixarem de ser dois tipos de dinamismo diversos, poderão ainda concentrar-se?
A resposta será positiva e o processo desenrola-se de forma indutiva (secundando o processo científico de abordagem da natureza). Após definição da tarefa filosófica, na 1.ª parte das Tendências, e de apresentação das ideias vectoriais do pensamento moderno, segue-se o modo como quer as ciências quer a filosofia antecipam, por assim dizer, um acordo superior, uma conciliação de pontos de vista (não sem assinalar as incompletudes de cada uma). Finalmente, e na 3.ª parte, a apresentação do novo espiritualismo, solução de compromisso assinaladamente inspirada em Kant e na renovação do velho espiritualismo.
As influências do pensamento de Anthero são diversas e variadas. Leibniz, Kant, Hegel, Fchte, Hartman, para referir os principais, são alguns dos pensadores cujas linhas gerais de pensamento, quando não da terminologia, podemos de alguma forma rever nas Tendências. Todavia, o esforço desta obra ultrapassa o inventário das circunstâncias intelectuais em que ela se inscreve e filia, na medida em que responde a uma exigência muito humana de interpelação pelo sentido último do homem e do mundo.
O resultado “será, se assim se pode dizer, um espiritualismo idealista, enxertado, para florir e frutificar, no tronco robusto do materialismo. Superior à ciência como ideia e como critério, estará todavia na dependência da ciência, que só lhe fornece a matéria prima que tem de ser elaborada especulativamente(1)”
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Anthero de Quental, Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, Editorial Presença, Lisboa, 1995, pág. 121.

16 junho 2011

A David Mourão-Ferreira




No dia em que se assinalam 15 anos sobre o falecimento do ilustre Professor David Mourão-Ferreira, o Ex Libris comemora a efeméride deixando aqui um dos seus mais belos poemas.


Memória          

Tudo que sou, no imaginado
silêncio hostil que me rodeia,
é o epitáfio de um pecado
que foi gravado sobre a areia.

O mar levou toda a lembrança.
Agora sei que me detesto:
da minha vida de criança
guardo o prelúdio dum incesto.

O resto foi o que eu não quis:
perseguição, procura, enlace,
desse retrato feito a giz
pra que não mais eu me encontrasse.

Tu foste a noiva que não veio,
irmã somente prometida!
— O resto foi a quebra desse enleio.
O resto foi amor, na minha vida.


David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão"


* Fica como sugestão um documentário sobre a vida e obra do autor: http://www.youtube.com/watch?v=oiEnNfUx6d8

04 junho 2011

Novo colaborador

O Ex Libris recebeu mais um colaborador distinto - o meu caro Zé Luís - que vem trazer, com a sua personalidade sui generis, um contributo de valor para este espaço, onde o saber é tido como uma das coisas mais belas e estimáveis. Muito bem-vindo, caríssimo Zé, e obrigado por te juntares a nós!

01 junho 2011

A Eterna Criança

Les Jeunes Baigneuses, Bouguereau (1825-1905)


Com a força do seu olhar intelectual e da sua penetração espiritual cresce a distância e, de certo modo, o espaço que circunda o homem: o seu mundo torna-se mais profundo, avistam-se continuamente estrelas novas, imagens novas e novos enigmas. Talvez tudo aquilo em que o olhar do espírito exercitou a sua sagacidade e profundeza tenha sido apenas um pretexto para este exercício, um jogo e uma criancice e infantilidade. E talvez um dia os conceitos mais solenes, os que provocaram maiores lutas e maiores sofrimentos, os conceitos de «Deus» e do «pecado», não signifiquem, para nós, mais do que um brinquedo e um desporto de criança significam para um velho, - e talvez o «velho homem» tenha, então, necessidade de um outro brinquedo ainda e de um outro desgosto, - por continuar a ser muito criança, eterna criança!


Friedrich Nietzsche, in 'Para Além de Bem e Mal'

29 maio 2011

Trabalhos Suspensos


O Ex Libris anda há já algum tempo sem a dinâmica própria que conheceu aquando da sua criação. A razão disso: o estudo; testes e exames levam-me a não poder escrever nada para o blogue. Contarei apenas retomar essa actividade em finais de Julho, volvido o período de avaliações. Até lá as minhas sinceras desculpas aos leitores deste blogue, mas os deveres da Academia a isso obrigam!
Deixo-vos uma reinterpretação fantástica de Fauré por Bill Evans. Saudações!


21 abril 2011

"Nós e os Clássicos"

Este blogue tinha, como é óbvio, de publicitar aqui esta notícia! Uma excelente iniciativa por parte do Canal SIC, que merece os nosso maiores louvores.