22 dezembro 2010

Dos Cortes à Compensação



Tenho ouvido, com algum pasmo, alguns reputados juristas da nação falar da inconstitucionalidade da remuneração compensatória que cobrirá integralmente a perda de vencimento dos funcionários da administração pública regional.
E ainda mais pasmo fico quando o Representante da República, ao exercer o seu direito de veto político nesta matéria, não se exime de fazer considerações jurídicas sobre a constitucionalidade da medida.
Não obstante o veto político do Representante da República ao Orçamento Regional afastar a possibilidade de fiscalização preventiva depois da confirmação do diploma pela ALRAA, nada impede que a questão da constitucionalidade seja colocada a título sucessivo.
Falemos então de inconstitucionalidades. Mas falemos de tudo, não apenas de algumas coisas que só servem concepções arcaicas e centralistas que em nada se suportam constitucionalmente.
Quando vejo José Sócrates inserir no Orçamento de Estado uma norma que determina o abaixamento unilateral e generalizado das remunerações dos trabalhadores da Administração Pública e a manutenção desse abaixamento por um período plurianual, ultrapassando portanto todos os limites do ano económico, fico perplexo ao verificar que estes mesmos zeladores da constituição não abram a boca para dizer rigorosamente nada acerca inconstitucionalidade material clara (por violação dos artigos 105º, nºs 1 e 3 e 106º, nº 1 da Constituição) que tal norma representa.
A estes constitucionalistas não impressionou que tal norma comprometesse as legítimas expectativas à integralidade e não redutibilidade remuneratória com base nas quais os trabalhadores visados oportunamente fizeram as suas opções e contraíram as suas obrigações. A eles não impressiona que de forma violenta, grave e desproporcionada se afectasse situações jurídicas anteriormente constituídas e se fizesse tábua rasa do princípio da confiança ínsito na ideia de Estado de direito (artigo 2º da CRP), nem tão pouco que esta norma consubstanciasse uma verdadeira restrição ou suspensão dum direito constitucional fundamental: o direito ao salário, consagrado no artigo 59º, nº 1 al. a) da CRP.
Estes exímios constitucionalistas só conseguiram ver inconstitucionalidades numa norma que repõe a justiça salarial nos Açores, numa opção política clara de encontrar soluções para a crise económica que não passam exclusivamente pelo sacrifício das pessoas e do seu nível de vida.
O que Carlos César provou é que havia outras opções e que não estão verificados os pressupostos da redução salarial que princípio da necessidade impõe nestas situações. É isto que incomoda tanto Lisboa, os Cavacos, os Sócrates, os Marcelos, os Jorges Mirandas e, por fim, o Representante da República… é isto que incomoda os arautos das teses neoliberais. Atrapalha a atitude de César, porque põe a nú a hipocrisia dos governantes que exigem sacrifícios do salário, emprego, saúde, segurança social de todos os portugueses, mas que ao mesmo tempo não exigem sacrifícios com as mais-valias e dividendos de alguns privilegiados.
Falemos claro, porque é isto que está em causa!
Os Açores têm autonomia política e financeira e as opções feitas são-no no quadro dos seus poderes e prerrogativas constitucionais e estatutárias. A medida em questão não custa um cêntimo a mais que seja ao Estado; trata-se apenas de uma opção legítima e justa que o Estado não soube fazer no seu Orçamento e que os Açores, sacrificando outros investimentos, se viram obrigados a compensar. Considerar isto uma violação dos princípios da igualdade e da solidariedade nacional é não perceber as bases do regime autonómico, fundado nas especificidades geográficas, económicas, sociais e culturais das populações insulares (artigo 225.º, n.º 1 CRP). Quem não tiver imaginação para mais, basta que pense que os custos nos Açores não são iguais aos do continente, nem tão pouco aos da Madeira (que tem apenas duas ilhas), e que uma redução salarial poderia conduzir a uma fuga de cérebros para sítios onde estes constrangimentos não se verificam. E é justamente por esta razão que o próprio Estado confere subsídios aos funcionários da administração central que trabalham nos Açores. Ou não é assim? Falar de falta de solidariedade dos Açores para com o restante país ou é brincadeira ou é ultraje: Brincadeira, porque se as opções fossem outras não reverteria um cêntimo que seja para o OE; Ultraje, porque há uma pesada factura histórica da República para com a Região que está longe de estar paga… Haja coerência!
Por todas estas razões só posso concluir que este “alevanto” político e jurídico contra as medidas do Governo dos Açores não são mais que uma tentativa de desviar as atenções dos problemas constitucionais do próprio OE, apontar o dedo à Autonomia como “bode expiatório” dos problemas estruturais do país e atacar aqueles que, como César, ainda acreditam no modelo social de Estado.

21 dezembro 2010

O RECOMEÇAR DO FILHO DO HOMEM

René Magritte, Le fil's de l'homme
Recomeça...
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...


Miguel Torga


Nas palavras do próprio pintor, “o homem do chapéu de coco é o Sr. Normal, no seu anonimato. Eu também uso um; não tenho vontade de me destacar das massas.” Em Magritte assiste-se a uma comum vontade de assim permanecer: comum. O insólito cresce quando observamos cada não-rosto. O que aqui se tenta é demonstrar que cada traço facial por ele pintado esconde um conjunto de sentimentos que o artista não deseja manifestar. Trata-se então de uma camuflagem que se estende das roupas ao rosto. Um intimista, de facto, mas que só em segredo diz algo sobre si. Se o anonimato só for conseguido à custa de uma redonda maçã verde, que assim seja.
Mas o “Recomeçar” de Torga dá um novo sentido à maçã verde: “De nenhum fruto queiras só metade”. O Sr. Normal quer também saborear a sua vida em toda a sua inteireza, sem nunca se saciar, mesmo que vá colhendo ilusões atrás de ilusões. O segredo está em fazê-lo sem angústia e sem pressas. Só assim se consegue que os passos rumo ao futuro, num caminho obviamente duro, sejam dados em liberdade.
Não o fazer é perder a consciência de si e da sua própria humanidade. Permitir que a loucura deixe de ser nossa para passarmos a ser da loucura. Porque a loucura só é nossa enquanto, com lucidez, nela nos reconheçamos.

Feliz Natal!


É, para mim, uma das músicas mais bonitas do Natal: Adeste Fidelis. Através dela gostaria de desejar a todos os caríssimos leitores deste blogue, em meu nome e julgo que posso fazê-lo também em nome dos outros autores, um Feliz e Santo Natal e votos de um Próspero e Venturoso Novo Ano, repleto de tudo aquilo que de melhor a vida nos pode dar. Tudo de bom!


19 dezembro 2010

A Montanha Mágica - Thomas Mann

O que devo eu então dizer sobre o próprio livro (Montanha Mágica) e ainda por cima, como deve ser lido? O começo é uma exigência muito arrogante, a dizer que se deva lê-lo duas vezes. É claro que essa exigência é retirada imediatamente para o caso de que na primeira vez se tenha ficado entediado. A arte não deve ser nenhum trabalho escolar nem dificuldade, nenhuma ocupação contre coeur, mas sim deve alegrar, entreter e animar e aquele sobre o qual uma obra não exerce esse efeito então este deve deixar a obra de lado e voltar-se para outra. Mas quem chegou uma vez até o final com a “Montanha Mágica” então eu aconselho a lê-la mais uma vez, pois seu feitio particular, seu caráter como composição traz consigo que o prazer do leitor aumentará e se aprofundará da segunda vez, - como se deve já conhecer uma música para poder gozá-la de acordo.

Extracto de Conferência apresentada por Thomas Mann em Maio de 1939 aos estudantes da Universidade de Princeton

Desta feita a obra sobre que falarei é uma das referências do panorama literário mundial: A Montanha Mágica de Thomas Mann. Sem dúvida um dos livros mais marcantes que alguma vez li. Trata-se de um livro extenso,que poderá intimidar,desde logo, algum leitor mais comedido em empresas litrerárias; recheado de pérolas; um livro que, segundo o autor, merecerá uma segunda leitura. Uma obra, segundo doutas opiniões, iniciática; designada com o termo alemão Bildungsroman (romance de aprendizagem ou formação), o tipo de romance em que é exposto de forma pormenorizada o processo de desenvolvimento físico, moral ,psicológico,estético , social ou político de uma personagem, geralmente desde a sua infância ou adolescência até um estado de maior maturidade.

No caso essa personagem seria Hans Castorp, personagem principal do livro, que, terminada a sua formação académica, vai visitar o seu primo a um sanatório nos Alpes, durante três semanas, sem imaginar que essa estadia lhe iria marcar profundamente a sua vida.

Nessa estância, Hans vai conhecer várias pessoas que lhe transmitem múltiplas perspectivas sobre a vida e tudo o que a rodeia, o que vai modificando a pouco e pouco o interior deste homem; homem prático que, aos poucos, vai-se deixando enlear nas profundezas da sabedoria, angústias e paradoxos da humanidade; daí ver-se este romance como romance de iniciação. É fácil o leitor colocar-se no lugar de Hans Castorp e ir fazendo o seu percurso, aprendendo e, sobretudo, reflectindo sobre todas as temáticas que Mann aborda na obra.
O expoente do livro,e isso é ponto assente, são as dissertações e discussões de Settembrini e Naphta, dois "sábios" rezingões que defendem de forma extrema os seus ideais, centrados na "razão", no caso de Settembrini, e no "espírito", no caso de Naphta. A razão e o espírito travam, sob a magistral batuta de Mann, grandes batalhas, onde cada um deles procura puxar Castorp para a sua causa, não existindo, todavia, nunca um vencedor.

Outras personagens enigmáticas recheiam este romance: Peeperkorn, personagem que ofusca Settembrini e Naphta, com a sua percepção prática de apreciação das coisas boas e belas da vida; Behrens, com a sua visão pragmática e um tanto obscura sobre a doença, entrecortada por obcessões marginais sobre a arte, o belo, que é complementada pelo seu assistente, Krokowski, com conferências e estudos desconcertantes sobre o amor e a doença, e depois sobre o espiritismo e a sua relação com a material física.
Embora influenciado pelas múltiplas dissertações e discussões entre Settembrini e Naphta, existem muitos outros episódios e estágios no romance que influenciam Hans Castorp, sendo de destacar a visão da humanidade que ele tem num sonho durante uma tempestade de neve, sensivelmente a meio do livro.

A sua paixão por Claudia Chauchat, que tem ideais completamente opostos aos dele, as suas próprias experiências pessoais através da discussão do tempo, da arte, a assistência aos doentes terminais, a revelação da música, a estranha passagem pelo ocultismo, etc, tornam este romance uma amálgama de grandes momentos, que é difícil de se aferir o seu real valor com apenas uma leitura. Chegados ao fim do livro, facilmente concluímos que, apesar de algumas partes serem um pouco entediantes, afinal a obra perfaz um conjunto harmonioso e todas as partes têm a sua razão de ser, o que o torna apelativo a uma segunda leitura, não obstante as suas quase 816 páginas.

Certamente que A Montanha Mágica não terá sido o primeiro livro que li que marcou pelas variadas dissertações e discussões que apresenta, todavia dá, isso é indiscutível, o mote para nos lançarmos na reflexão sobre inúmeros assuntos que são, por Mann, abordados e magistralmente dissecados. Uma obra de leitura fundamental, eivada de humor e ironia, que acredito, e atendendo à época, daria um excelente presente natalício.

12 dezembro 2010

Em defesa do Socialismo

O texto que agora publico esteve para o não ser por razões várias. Pareceu-me todavia que era vital vir defender o meu ponto de vista quanto à questão que dá título a este post, marcando assim a minha posição político-ideológica em definitivo. Não pretendo alongar-me muito, sob pena de o texto ficar maçador. Servir-me-ei dos meus conhecimentos, quiçá parcos, na defesa daquilo em que acredito. E farei ainda algo que não posso deixar de fazer, uma vez que o que hoje escrevo surge de um distinto ponto de vista sobre estes assuntos, entre mim e um amigo, ou seja, irei afirmar quão nefasto pode ser e efectivamente é o capitalismo, tão acerrimamente defendido por muitos.

Importará pois, em primeiríssimo lugar, definir o Socialismo, no seu sentido original. Encontramos, por exemplo, uma definição em Pierre Leroux (1797-1871) que afirma o Socialismo como a doutrina que subordina o sujeito à sociedade. Já Durkheim, por outro lado, viria afirmar que “chama-se socialista a toda a doutrina que exige a ligação de todas as funções económicas ou de algumas de entre as que actualmente estão difusas, nos centros directores e conscientes da sociedade”. Não nos fiquemos apenas por estas definições simplistas. Em bom rigor, do que se trata quando falamos em Socialismo é de um sistema político-económico, ou de uma linha de pensamento surgida no século XIX, visando confrontar o liberalismo e o capitalismo. Aquilo que verdadeiramente o Socialismo advoga é essencialmente a extinção da propriedade privada dos meios de produção e a divisão igualitária das riquezas e propriedade, com a principal finalidade de proporcionar a todos um modo de vida mais justo.
Parecem ser estas definições por demais pomposas e utópicas. São e não são. Aceito quando me dizem que o Socialismo matou mais de 100 milhões em todo o mundo e espalhou terror, miséria e fome. Todas as catástrofes naturais dos últimos quatro séculos, mesmo as mais devastadoras, todas somadas, não conseguiram produzir resultados tão nefastos. É um facto puro e simples, constatável na reputada obra O Livro Negro do Comunismo. Como já me disseram, basta consultá-la e fazer os cálculos.

Porém, como o que determina as nossas crenças e convicções não são os factos, mas as interpretações, resta sempre ao socialista devoto, como eu, o subterfúgio de explicar, ou pelo menos tentar, essa abominável sucessão de calamidades como o efeito de casos fortuitos sem qualquer espécie de relação com a verdadeira essência da doutrina socialista, a qual conserva assim, imune a toda a triste história das suas realizações, a beleza e a dignidade de um ideal superior. Será sequer minimamente aceitável ou coerente afirmar que os regimes de Estaline, Mao, Hitler, todos diferentes entre si, realizaram um socialismo tal qual idealizado pelos grandes teóricos? De todo. Por exemplo, Hitler era nazi, Mao era comunista (o comunismo chinês, com divergências em relação à URSS), Estaline era comunista; portanto ideologias e modelos políticos completamente diferentes que utilizaram da violência para promover massacres contra o adversário, ou não, servindo-se da lógica de Clausewitz de que “ a guerra é uma extensão da política e que a política exige acções violentas por parte dos governos”.

Todavia, cada qual usava a lógica da violência com um propósito distinto: Estaline e Mao exterminaram adversários políticos que, de algum modo, ameaçavam a manutenção do poder e das suas próprias vidas. Hitler perseguiu judeus, em virtude de uma visão racista e perfeitamente irracional, em defesa da superioridade da raça ariana. Estaline também era xenófobo e não gostava de judeus, mas o preconceito racial não esteve na pauta das suas políticas.
Tudo foi realizado conforme a teoria socialista, na sua vertente científica, especialmente aquela defendida no Manifesto Comunista, a cartilha utilizada por aqueles déspotas. A URSS e a China basearam-se no ideário marxista. Contudo há diversas interpretações das doutrinas marxistas e no caso chinês, Mao foi muito influenciado por algumas tradições de Sun Tzu e numa leitura orientalizada do marxismo (traduções com outros significados), ao mesmo tempo que Estaline seguia uma linha diferente de Trotsky e Lenine. Tanto assim é, que o Partido Comunista Chinês criou uma linha completamente diferente do comunismo soviético, acentuando-se assim diferenças significativas entre ambos.
Poderia vir aqui defender com unhas e dentes, permitam a expressão, o Socialismo e a sua viabilidade, mas não o farei. Sinto-me socialista, defendo o Socialismo na sua essência e de outro modo não poderia ser. Todavia e não poderia terminar este texto sem o fazer, cumpre que diga o que realmente penso sobre afirmações como a de o socialismo ter morto 100 milhões ou sobre o capitalismo ser um sistema defensável e viável.

Sobre a primeira afirmação creio já ter dito o que penso. As experiências, ditas socialistas, despóticas a que aludi não foram, sublinhe-se veementemente, de todo, realizações do verdadeiro socialismo. Foram, isso sim, enormes desumanidades, abomináveis e reprováveis a todos os títulos, espelho de um rebaixamento voluntário e perverso da inteligência a um nível infra-humano.
Mas se determinadas pessoas afirmam que o Socialismo matou milhões, não posso deixar de ficar perplexo e profundamente indignado quando me vêm defender o Capitalismo e os seus supostos benefícios. A essas pessoas simplesmente direi que o Capitalismo é o regime mais assassino da história da humanidade. Na verdade, os mortos pelo Capitalismo são tantos que é impossível fazer uma contagem exacta, são muitos mais do que aqueles a quem o dito Socialismo ceifou a vida. Sucede que a maioria da humanidade prefere ser morta pelo Capitalismo, uma vez que isso significa uma maior oportunidade de ter uma morte tardia, não violenta e com um enterro digno. Refira-se ainda o que afirmou, sem margem para dúvidas, Jean Ziegler, relator da ONU para o direito à Alimentação: “ O Capitalismo mata 100.000 pessoas por dia de fome”. E isto acontece, apesar do mundo ter actualmente a capacidade para alimentar 12 biliões de seres humanos, ou seja, o dobro da população mundial. Mas permitam-me ainda aludir a um caso concreto a nível mundial, onde impera o Capitalismo: a Índia. Até hoje vigente nesse país,o sistema odioso de castas é a pedra angular que, se retirada da parede que sustenta o sistema capitalista na Índia, fará desmoronar como um castelo de cartas, não só o sistema capitalista entendido como um sistema socioeconómico viável, mas também todos os disparates cínicos e verborreicos ,que hoje se apresentam como substrato doutrinário “científico”, e que pretensamente justificam esse ineficiente, cruel e cínico sistema socioeconómico denominado de Capitalismo. E não poderei ainda terminar sem referir a ditadura capitalista alemã de Hitler( que nada tem que ver ideologicamente com o socialismo) e sobretudo as ditaduras capitalistas que assolaram a América do Sul durante mais de 20 anos, sendo comum entre elas a total ausência de democracia. Curiosamente só os regimes comunistas herdaram a fama de antidemocráticos, enquanto o regime capitalista,ironicamente, constituiu sinónimo de democracia.
O mais interessante, é que a característica mais marcante em todo e qualquer regime capitalista é precisamente a dominação da maioria por uma selecta minoria de privilegiados e isso é a própria contradição em termos, do que representa o conceito de democracia.Essa dominação ocorre em razão do maior poder económico e financeiro destes, que obviamente têm as leis a assegurar-lhes a estabilidade do sistema, de forma bem mais eficiente do que nas ditaduras de esquerda. É que contam e sempre contaram com eficiente sistema de marketing, para fazer crer aos incautos que o luxo, a ostentação e o glamour são acessíveis a todos os que se esforçarem e que as derrotas pessoais são meras consequências de erros e fracassos individuais. Como se todos começassem a corrida em posições equivalentes na pista....Mas não se esqueçam ainda todas as outras ditaduras políticas de natureza capitalista: todas as ditaduras conservadoras da Europa. As experiências portuguesa, espanhola, italiana ou até alemã estão todas elas ligadas, sustentadas e patrocinadas por oligarquias capitalistas. Isso não é refutável.
Termino, mas não sem antes reconhecer que haveria muito mais a dizer neste "julgamento da história", que pecará então por ser mui breve e incompleto. Todavia, creio que responderá, no essencial, àquilo que pretendia. Portanto, e salvo melhor opinião, dou por terminado o texto, rematando-o, como claramente não poderia deixar de ser, citando o iluminado Anthero de Quental, na sua valiosíssima obra A Política:

“ (…)o Socialismo, tão antigo como a justiça e a opressão do pobre pelo rico, do desvalido pelo poderoso, não é mais do que o protesto dos que sofrem contra a organização viciosa que os fez sofrer. É a reclamação da justiça e da igualdade nas relações dos homens; dos homens que a natureza criou livres iguais, e de que a organização social fez como que duas inimigas, uma que manda, goza e oprime, outra que obedece, trabalha e sofre: dum lado, senhores, aristocratas, capitalistas; do outro, escravos, servos, proletários!
No dia em que esta desigualdade monstruosa e ímpia apareceu no mundo, apareceu também logo a protestar contra ela, o Socialismo. O Socialismo não é de hoje nem de ontem. Todos os grandes pensadores, desde Pitágoras, e Platão, e Cristo, e os Gracos, e os santos da primitiva igreja, e os fundadores das ordens monásticas, todos reclamaram contra a miséria e a desigualdade, em nome do direito natural e inalienável que todo o homem tem à vida, ao bem-estar, aos meios de desenvolver a sua actividade, trabalhando, à família e à instrução. A todos eles fez o espectáculo da injustiça social soltar palavras de amargura e indignação.”

07 dezembro 2010

Carta sobre o Humanismo - Martin Heidegger


“Comment redonner um sens au “humanisme?” - Beaufret



Escolhi desta vez uma obra de carácter mais filosófico, uma das minhas últimas leituras estivais: Carta sobre o Humanismo de Martin Heidegger, numa edição da Guimarães editores. Heidegger, filósofo alemão, será sem dúvida um dos pensadores mais importantes de toda a história do século XX, a par com outros nomes indeléveis como os de Bertrand Russel, Wittgenstein ou Foucault. Seria também decisiva a influência daquele filósofo na obra de Jean-Paul Sartre.
Abandonando a teologia, mergulhou nos helenos para tentar encontrar neles a substância que de alguma forma amparasse o homem contemporâneo num mundo desesperançado de Deus. Erguendo-se contra a tradição metafísica, voltou-se para o ser (ontologia), procurando encontrar um norte num cenário onde os valores da religião e da metafísica haviam sido abalados até as suas raízes.
A filosofia heideggeriana é toda ela traduzida numa linguagem altamente cifrada,complexa e, dir-se-ia também, de difícil compreensão. Aliás é justamente isso que marca o chamado Deutschesgeist:o espírito alemão, que sempre espantou o Ocidente pela sua complexidade, diversidade, seriedade e profundidade. Kant, Hegel, Marx e Nietzsche são, nomes que desde logo, constituem disso mesmo um exemplo.
Muito cultuado, Heidegger foi um fervoroso apologista do nazismo antes da derrota da Alemanha, na segunda guerra mundial. Cumpre dizer que ficou, para muitos, como um pensador original e um crítico da sociedade tecnológica do século XX. A corrente em que se insere o seu pensamento e obra é designada de "Existencialismo", muito na linha do pensamento de Kierkegaard, à qual Heidegger se filiou. Foi também um escritor prolífico, sendo que se estima que, a calcular tudo o que escreveu, isso reuniria 70 obras.
Justamente uma dessas obras foi a Carta sobre o Humanismo, de que aqui, brevemente, falarei. Embora Heidegger já tivesse um renome respeitado no continente europeu, jamais se debruçara e escrevera uma obra de teor explicitamente “humanístico” e “ético” e a sua vinculação ao partido nazi, até o final da guerra, tornava ainda mais suspeitas as intenções do autor. Ante tal cenário, Jean Beaufret, existencialista francês que tentava ligar a obra de Heidegger ao existencialismo, escreve uma carta pedindo ao pensador alemão que esclarecesse que significado se poderia dar ao humanismo abalado por duas guerras mundiais sucessivas.
Heidegger responderia então, a Beaufret, em Carta sobre o Humanismo. Em linhas generalíssimas, o filósofo alemão irá propor, tendo por base o fragmento 119 de Heráclito, que a ética abandone o moralismo superficial e o legalismo dos códigos de costumes e procure encontrar a sua raiz na morada do próprio ser humano. A partir da compreensão radical da morada do ser no homem, seria possível entender como emergem todos os comportamentos e costumes quotidianos de cada um.
Contrário às demandas por um humanismo e às novas correntes de pensamento rotuladas, Heidegger vai dizer que “na sua gloriosa era, os gregos pensaram sem tais títulos”. Para ele, só quando o pensamento sai do seu elemento próprio é que, por perder o poder de guardar a sua essência, a técnica passa a ser valorizada como actividade cultural e a “Filosofia vai transformar-se numa técnica de explicação pelas causas últimas”, numa crítica directa à metafísica feita por Aristóteles, que buscava as causas últimas das coisas. O humanismo, de facto, deveria consistir numa meditação que preservasse o homem na sua humanidade, na sua essência.
Todavia, para experimentar a sua essência é preciso que se retome as questões originárias da história do ser: a sua “pátria”, que na concepção adoptada por Heidegger, aqui, não tem uma conotação nacionalista, mas apenas ontológica-historial de um momento no qual o homem esteve mais próximo do ser. O esquecimento do ser é o resultado desse distanciamento do homem em relação à sua “pátria”. Concebida nesses termos a metafísica heideggeriana revela um forte apelo à tradição clássica que se concretizaria por um regresso ao pensamento originário helénico.
O humanismo de Heidegger, nas suas próprias palavras, é aquele que “pensa a humanidade do homem desde a proximidade do ser”. Em causa está, portanto,não o homem, mas a sua história e origem, do ponto de vista da verdade do ser. O sucesso desse humanismo, para além do homem, depende da linguagem e do acesso do pensamento originário àquela verdade a que pertence a linguagem. Em suma, “a essência do homem reside na ec-sistência”, isto é, o humanismo deve voltar-se não para o ente humano, mas para a sua existência autêntica na verdade do ser-no-mundo. O mundo, aqui, é concebido como o lugar no qual o ser aparece: uma clareira, no sentido heideggeriano.
Heidegger nega o humanismo para poder afirmá-lo. Ele o nega no sentido que foi pensado até então, tendo por base a concepção metafísica do homem enquanto “animal racional”. “Dar-lhe novamente um sentido pode significar: determinar de novo o sentido da palavra”. E para isso a essência do homem deve ser experimentada mais originalmente e essa essência é justamente a sua ec-sistência e a sua importância é recebida do próprio ser para a vigilância do ser, pondo-o na própria verdade do ser. “Importa a humanitas ao serviço da verdade do ser, mas sem o humanismo no sentido metafísico”.
Heidegger não criou nem se dedicou ao estudo da Ética, mas podemos perceber que o seu discurso nos remete para os fundamentos ontológicos da eticidade. Ao tratar do ethos originário, da morada, o filósofo remete-nos para uma nova perspectiva ética. Não podemos atribuir um carácter moral à sua filosofia,pois, estaríamos a interpretar erroneamente o seu pensamento. No entanto, a busca de uma Ética originária é necessária, visto que o homem passa por uma crise histórica, fruto de uma falta de compreensão do sentido do Ser. E acreditamos que a partir desta nova visão e postura “ética”,ele possa indicar caminhos que o direccionem para uma possível solução desta crise, que nada mais é do que uma crise de compreensão do próprio Ser do homem.

06 dezembro 2010

Petite Messe Solennelle



Há uns dias tinha mais uma vez me queixado da minha condição insular, da centralidade da cultura nacional em Lisboa e da impossibilidade de assistir à interpretação pelo Coro do S. Carlos, na Igreja de São Roque, à “Petite Messe Solennelle”, de Gioachino Rossinni.
Quis o destino (para quem acredita nestas coisas) que se repetisse a apresentação no Salão Nobre do Teatro S. Carlos e que eu me encontrasse em Lisboa no passado sábado, 4 de Dezembro. Não hesitei e inclui no meu programa a ida ao S. Carlos às 18h00. Combinei com um amigo, que me arranjou os ingressos e… fomos. Não podia perder uma das minhas missas dilectas havendo aquela oportunidade.
Rossini designou a “Petite Messe”, como sendo o seu “último pecado da velhice”. Já estava aposentado há 30 anos, quando, aos 75 anos, por solicitação do conde Pillet-Will, Rossini se decidiu lançar na aventura de compor uma missa completa.
Como se tentasse redimir-se de negligenciar o Criador em boa parte de sua obra, escreveu o seguinte:"Bon Dieu; la voilà terminée, cette pauvre petite messe. Est-ce bien de la musique sacrée que je viens de faire, ou bien de la sacré musique ? J'étais né pour l'opera buffa, tu le sais bien ! Peu de silence, un peu de coeur, tout est là. Sois donc béni et accorde-moi le Paradis."
Na verdade, “Petite Messe” (pequena missa), nada tem de pequena, uma vez que dura aproximadamente 90 minutos, contendo, simultaneamente, uma candura e uma grandeza profundas que só pode emocionar quem alma tiver. Simples e clara nas formas e modesta no seu efectivo vocal e instrumental, a missa está escrita para quatro solistas, coro misto, piano e harmonium. Não é isto, porém, que lhe nega momentos magestosos e fulgurantes.
No S. Carlos a Direcção Musical ficou a cargo do maestro Giovanni Andreoli e contou com as participações da soprano Maria do Anjo Albuquerque, da mezzo-soprano Natália Brito, do tenor Carlos Silva e do barítono Simeon Dimitrov, bem como com as participações de Nuno Lopes no harmonium e de João Paulo Santos ao piano.
Estamos a falar de um verdadeiro “testamento musical”, se assim podemos chamar, já que a esta obra não se seguiu nenhuma outra digna de registo, a não ser pequenas peças de circunstância, como o hino a Napoleão III, composto para a exposição de Paris.
Na Petite Messe, Rossini colocou toda a sua sabedoria, fervor e audácia. O resultado é um olhar melancólico pelo passado, com uma roupagem de olhos postos na modernidade.
A partitura está dividida em duas partes bem distintas, com 7 partes cada uma. A primeira formada pelo Kyrie e pelo Gloria com suas subdivisões, e a segunda pelo Credo, um Prélude Religieux instrumental tocado durante o Ofertório, o Sanctus, o Salutaris e o Agnus Dei.
Ao contrário do Stabat Mater, que é impetuoso e passional, a Petite Messe, escolheu a delicadeza e a intimidade. As nuances fortes para trechos como o início do Glória e do Cum Sancto Spiritu; as partes extremas do Credo são ligadas tematicamente; o solene Prelúdio religioso; as aclamações do Sacntus e do Hosanna do Sanctus e os últimos compassos do Dona Nobis Pacem proclamado sobre um mi maior triunfal. Rossini intitulou a “Petite Messe” de “Solennelle”, porque efectivamente são marcantes os tempos de marcha e os tempos majestosos.
A ter de destacar algo: Impressionou-me particularmente a interpretação de DOMINE DEUS, no Glória, do tenor Carlos Silva, numa interpretação na melhor tradição do bel canto – como a peça pede! – ficando no final totalmente emocionado com o AGNUS DEI na voz da mezzo-soprano Natália Brito. Uma palavra para a prestação do pianista João Paulo Santos: impecável.

Sobre os Livros: Pseudo-Ensaio

Nunca antes fez tanto sentido publicar este pseudo-ensaio, assim lhe chamei, que escrevi há uns tempos no meu blogue pessoal. Republico-o aqui na esperança de que se iluminem alguns espíritos, na esperança de tornar claro aquilo que para muitos é por demais complexo, na esperança enfim, quiçá vã, de que se compreendam os meus intuitos.


Tantas vezes me tenho indagado sobre se a experiência dos textos ou livros mais interessantes da primeira infância não é um requisito essencial para que se tenha uma preocupação através de toda a vida em relação a ela e também por literatura menos, mas igualmente importante. Os anseios do espírito,o seu tolerável inconformismo pelos constrangimentos do condicional e do limitado, pode muito bem exigir encorajamento nos princípios. Em todo o caso, seja por que razão for, as pessoas perderam a prática da leitura,assim como o gosto pela mesma. Não têm a expectativa do deleite ou aperfeiçoamento proveniente da leitura. Elas são, dir-se-ia, "genuínas" ao ter poucas pretensões culturais e ao recusar vénias rituais hipócritas para com a (alta) cultura.
Pergunta à qual nunca me esquivo é a de perguntar às pessoas, particularmente àquelas com quem tenho mais confiança, que livros realmente lhes interessam. Verdade seja dita: a maior parte delas fica silenciosa, embaraçada, nalguns casos, com a pergunta, escudando-se então,não raras vezes de forma inteligente, a responder-me. A noção de livros como objecto inseparável e de absoluta dedicação é-lhes estranha. Não há palavra impressa a que recorram para mera consulta, inspiração ou até mesmo satisfação. Todavia, vezes há em que me mencionam determinado livro, embora sem pretensões literárias, que, com a sua segurança subnietzschiana, permita-se-me o neologismo, os incita de algum modo para uma nova maneira de viver. Outros há que referem obras recentes que os impressionaram e apoiaram a própria interpretação de si próprios.
Perdoe-se-me a audácia do meu livre pensar, mas imaginemos uma dessas pessoas a passear pelo Louvre, que curiosa e frustrantemente ainda não tive ocasião de visitar, e pode calcular-se logo a condição da sua alma. Na sua inocência das histórias da antiguidade , sobretudo, grega e romana, Rafael, Da Vinci, Miguel Ângelo, Rembrandt e todos os outros não lhes podem dizer nada. Tudo o que vêem são formas e cores - a chamada arte moderna. Em resumo, como muito mais na sua vida espiritual, os quadros, as estátuas e as restantes manifestações artísticas são abstractos. Não atendendo ao que grande parte da sabedoria moderna reivindica, estes artistas contavam com uma imediata identificação dos seus temas e, acima de tudo, que tivessem um poderoso significado para quem os via. As obras eram a plenitude desse significado, conferindo-lhes uma realidade física e daí completando-os. Sem esse significado, e sem serem algo de essencial para quem as vê como ser moral, político e até religioso, as obras perdem a sua essência. Não é apenas a tradição que se perde quando a voz da civilização elaborada há milénios foi silenciada desta forma. É o próprio ser que desaparece para lá do dissolvente horizonte. Lembro-me de a minha saudosa, e hoje amicíssima, professora de Latim e Grego, me ter contado um episódio que bem se relaciona com o que aqui escrevo. Contou-me ela que há muitos anos atrás recebeu de um aluno, que viajara a Itália, um postal no qual se lia qualquer coisa como, não ipsis verbis, " A senhora não é professora, mas sim uma agente de viagens." Julgo que nada podia ter expressado melhor a intenção da senhora como educadora e como pedagoga. Achava o aluno que ela o preparara para ver. Depois podia começar a pensar por si próprio, tendo já alguma coisa sobre que pensar. É nesse sentido que afirmo que a educação hodierna deve tentar encontrar o que quer que haja nos estudantes que anseiam por se realizarem e reconstruir a aprendizagem que lhes possibilite, de maneira autónoma, procurar essa realização.
Nos tempos de hoje, os estudantes nada têm como um Eça que deu a tantos de nós os inesquecíveis Egas, Carlos, Craft's, etc, com que afinámos a nossa visão, permitindo-nos alguma subtileza na nossa capacidade de discernir entre tipos humanos. É um conjunto complexo de experiências que dá a uma pessoa a possibilidade de dizer muito simplesmente : " Aquele fulano é um João da Ega." Sem a literatura, nenhuma dessas, por vezes caricatas, observações é possível e perde-se então a fina arte da comparação. É assustadora a ignorância psicológica das pessoas, mormente dos estudantes, na medida em que têm apenas psicologia pop para lhes dizer como são os outros, e toda uma gama dos seus motivos. Quando vacila o conhecimento que devemos quase exclusivamente ao génio literário, as pessoas tornam-se mais iguais entre si, por não poderem ser de outro modo. O que a pobreza de espírito coloca em lugar da verdadeira diversidade são aspectos, chamemos-lhes, de ordem externa que dão ao observador dicas sobre o que se passa lá dentro.
A falta de educação tem como resultado a busca, pelas pessoas, por esclarecimentos onde quer que estejam prontamente disponíveis. A maior parte vira-se para o cinema. Os filmes, progressivamente emancipados da tirania literária sob a qual estavam e que lhes dava uma má consciência, tornaram muitos, alguns até com pretensões sérias, intoleravelmente ignorantes e prontos à manipulação. Por isso mesmo reitero que o facto de as pessoas não lerem bons livros tanto enfraquece a visão como aumenta a nossa tendência mais fatal - a crença de que o momento presente reflecte toda a existência.
Estou em crer que a única forma de contrariar essa tendência é intervir com mais vigor na educação daqueles, hoje já não tão poucos, quem vêm para a Universidade com um forte desejo de un je ne sais quoi, que receiam não conseguir descobri-lo e aos quais é vital cultivar a mente para que a sua busca tenha êxito. Começar pelos Clássicos, os quais devem ser aqueles que devemos afirmar estar a reler e nunca a ler segundo Italo Calvino, na sua obra Porquê ler os clássicos? , é e será sempre uma óptima empreitada para a formação intelectual de uma pessoa. Não permitamos pois, e com isto concluo esta dissertação absolutamente subjectiva, que as pessoas, e insisto sempre - os estudantes, permaneçam ignorantes à Cultura lato sensu e aos livros stricto sensu. A perspectiva mais comum deles carece pois de uma consciência das profundidades, bem como das alturas e inevitavelmente de um maior humanismo e sensibilidade.

Gratus in hanc domum acciperis!

O Ex Libris tem a honra de receber mais um autor, o ilustre José Couto. É com enorme prazer que o vemos juntar-se a nós, vindo enobrecer este espaço. Muito bem-vindo, José!

05 dezembro 2010

O Labirinto da Saudade - Eduardo Lourenço


Eduardo Lourenço com José Saramago

“Em princípio, todo o português que sabe ler e escrever se acha apto para tudo, e o que é mais espantoso é que ninguém se espante com isso.”


Terminei há poucos dias a re-leitura de uma obra imprescindível na compreensão do que nós somos e do que não somos. Em bom rigor, O Labirinto da Saudade é percebido como um discurso identitário. Na verdade, em todos os nove textos ensaísticos se vislumbra esse contexto de problematização das questões da identidade. O primeiro dos ensaios, e diga-se que um dos mais interessantes, entitula-se "Psicanálise Mítica do Destino Português", tendo sido dado à estampa na Revista Raiz & Utopia, no mesmo ano de publicação da obra, em 1978. Foi, de resto, o título desse ensaio pensado pelo autor para a obra, todavia Eduardo Lourenço, à semelhança do mexicano Octávio Paz - autor de O Labirinto da Solidão -, decidiu-se por O Labirinto da Saudade, um labirinto, portanto, mais português, por assim dizer: a saudade. Tema que, no entanto, não é tratado na obra como, por exemplo, o é em A Arte de Ser Português, de Teixeira de Pascoaes.
Surge a obra em 1978, quatro anos depois da queda do Império, assim como do Estado Novo; momento adequado para a publicar, segundo Lourenço, e com a intenção de:

- apelar à presença portuguesa na própria realidade, como nos diz o autor em “Repensar Portugal”;

- “repensar (…) a totalidade da (…) aventura histórica [portuguesa], não apenas em função das imagens e contra-imagens mais actuantes da (…) herança cultural [portuguesa] (…) sobretudo de origem estético-literária”;

- questionar “as várias versões dos discursos sobre Portugal”, entre as quais a, na altura ainda recente, “descolonização exemplar”, ou a produzida pelo salazarismo, “uma ideologia em torno da portugalidade e da expansão ultramarina, da família e da religião católica”.


Diz Eduardo Lourenço
numa entrevista: “É de crer que por deficiente tradução dos meus pontos de vista, O Labirinto da Saudade se transformou num texto-boomerang como algumas das reacções à obra, na altura em que saiu, o mostraram. O questionamento da identidade portuguesa não fazia parte do meu propósito”. Portanto um certo modelo de tensão essencial entre a visão consciente entre a raiz dos traços da portugalidade e a sua assunção de messiânico destino ou de hiperidentidade. “Quando muito, as versões dos vários discursos sobre Portugal que tinham, em comum, não só serem de carácter ontológico como transcendente ou, pelo menos, destinado a reforçar uma leitura transcendente do destino português”, conclui.
A leitura, portanto, de O Labirinto da Saudade como um discurso identitário é então vista pelo autor como contrária à sua intenção, que era, quer na ordem hermenêutica, quer na ordem ideológica e política, a de problematizar e, se possível, substituir os mais conhecidos discursos identitários que têm Portugal como objecto, por um outro que os explicasse sem ter a pretensão, por sua vez, de ser ‘a verdade’ sobre o que nós somos ou não somos. Sobre o porquê da leitura da obra como discurso identitário não nos cabe discutir aqui.
Cumpre apenas dizer que O Labirinto da Saudade é daquelas obras de leitura impreterível para qualquer português. Alexandre Herculano e Almeida Garrett, escritores representativos do Romantismo em Portugal; Eça de Queirós, Antero de Quental, Teófilo Braga e Oliveira Martins, todos eles setentistas e assinantes do programa das conferências democráticas do Casino; Fernando Pessoa e a moderna geração de Orpheu, “os novos” que desejaram “ser não apenas invenção e recriação de uma nova sensibilidade e visão da realidade (…),mas igualmente uma metamorfose total da imagem, ser e destino de Portugal” : todos estes escritores, nomes sonantes do panorama literário e cultural em Portugal, são referência em O Labirinto da Saudade, por pretenderem, em certa medida e no contexto da época, transformar e lutar contra imagens (reais) de um país (sonhado), uns desejando recriá-lo à imagem de nações europeias fortes, outros anunciando o renascimento do Império com a vinda de um Desejado. Os discursos identitários por eles criados constituem o nosso património cultural, formaram aquilo que chamamos o Ser Português.
Terminamos, reiterando o apelo à leitura desta obra,deste retrato, enfim deste “discurso crítico sobre as imagens que de nós mesmos temos [tínhamos] forjado” como disse o autor. Um livro de emergência, mas de uma emergência intemporal.


Nota: Sobre o autor recomendamos a leitura da sua biografia,no primeiro link abaixo, e do que sobre ele diz José Saramago, no segundo link:

http://www.wook.pt/authors/detail/id/13931

http://caderno.josesaramago.org/2008/10/13/eduardo-lourenco/

04 dezembro 2010

In memoriam Chateaubriand


François René de Chateaubriand em 1809, por Girodet. Museu de Saint-Malo.
A 4 de Setembro de 1768 nascia Chateaubriand, em França. Escritor, ensaísta, diplomata, político e um dos nomes maiores da literatura romântica, influência decisiva para toda a Europa pela sua obra memorável. Comemoramos o seu nascimento e deixamos aqui, no original, um dos seus poemas.

Souvenir du pays de France

Romance.

Combien j'ai douce souvenance
Du joli lieu de ma naissance !
Ma soeur, qu'ils étaient beaux les jours
De France !
O mon pays, sois mes amours
Toujours !

Te souvient-il que notre mère,
Au foyer de notre chaumière,
Nous pressait sur son coeur joyeux,
Ma chère ?
Et nous baisions ses blancs cheveux
Tous deux.

Ma soeur, te souvient-il encore
Du château que baignait la Dore ;
Et de cette tant vieille tour
Du Maure,
Où l'airain sonnait le retour
Du jour ?

Te souvient-il du lac tranquille
Qu'effleurait l'hirondelle agile,
Du vent qui courbait le roseau
Mobile,
Et du soleil couchant sur l'eau,
Si beau ?

Oh ! qui me rendra mon Hélène,
Et ma montagne et le grand chêne ?
Leur souvenir fait tous les jours
Ma peine :
Mon pays sera mes amours
Toujours !

O concerto

Deixo-vos aqui uma excelente sugestão cinematográfica, que já me seduziu, ainda que só com o trailer. É mais uma pérola do bom cinema francês, opinião minha, que faço questão de ir ver.




Na época de Brejnev, Andreï Filipov era o maior maestro da União Soviética e dirigia a célebre Orquestra de Bolshoï. Mas após ter recusado separar-se dos seus músicos judaicos, entre os quais o seu melhor amigo Sacha, foi afastado em plena glória. Trinta anos mais tarde, ele trabalha todos os dias no Teatro de Bolchoï mas… como empregado de limpeza. Uma noite, quando Andreï fica a tratar das limpezas até tarde, dá de caras com um fax endereçado à direcção do Teatro – um convite do Teatro de Châtelet para que a Orquestra de Bolshoï vá tocar a Paris. Subitamente, Andreï tem uma ideia louca: porque não reunir os seus antigos companheiros, que hoje em dia vivem de pequenos trabalhos e dirigi-los em Paris, fazendo-os passar pela orquestra de Bolchoï? É a oportunidade tão aguardada de, finalmente, se vingarem…

03 dezembro 2010

Outono dos Livros:

Feira de edições na BNP

Segue o link .

Notícia que não podíamos deixar de anunciar também aqui no blogue. Em tempos de crise, nada melhor do que estas feiras do livro, onde se encontram sempre preciosidades a baixíssimos preços. É de se aproveitar!

Prólogo





Cumpre, em jeito de Prólogo, justicar o título deste blogue, bem como o endereço que lhe demos, em data de lançamento de mais uma empresa
bloguística, permita-se-nos a expressão.

Inauguramos hoje, o caríssimo Dantas e eu, este blogue ao qual, por mútuo acordo, chamámos de
Ex libris, expressão latina cujo significado é justamente dos livros. Ex libris é portanto, e gramaticalmente falando, um complemento circunstancial de origem, sendo que indica a propriedade deste ou daquele livro em relação ao seu dono.
Este blogue, cujo título é o citado, pretende ser um espaço de discussão literária, na sua essência, esmiuçando, criticando, descrevendo, explorando e interpretando enfim obras que tenhamos lido,ou estejamos a ler e que, desta forma, queiramos partilhar com os nossos leitores. Não nos vamos ater, contudo, apenas a essas tarefas, pretendendo também aqui falar de outros temas que encontram ligação profunda entre si: eventos ligados à cultura; exposições; feiras do livro, ou ditas, festas do livro;arte; filosofia;religião; música; cinema e porque não política e ciências.

Quanto ao endereço do blogue, certamente será familiar a alguns leitores. Acreditamos que o o nome escolhido não poderia ser melhor. Todavia para que não restem dúvidas, explicitemos de que trata o
Bom Senso e Bom Gosto:

Constitui um dos documentos mais importantes da polémica literária que ficou conhecida como a Questão Coimbrã ou mesmo a Questão do Bom Senso e Bom Gosto, tendo surgido como resposta à carta-posfácio de António Feliciano de Castilho inserta no Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas, de Outubro de 1865, na qual o autor de Cartas de Eco a Narciso aludia ironicamente às teorias filosóficas e poéticas expostas nos prefácios a Visão dos Tempos e Tempestades SonorasOdes Modernas, de Antero de Quental (de Julho de 1865). Sentindo-se visado, Antero de Quental responde em Novembro com o panfleto Bom Senso e Bom Gosto. Carta ao Exmo. Sr. António Feliciano de Castilho, onde qualifica o juízo de Castilho como uma crítica "à independência irreverente de escritores que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência", que cometem "essa falta de querer caminhar por si, de dizer e não de repetir, de inventar e não de copiar". Antero define "a bela, a imensa missão do escritor" como "um sacerdócio, um ofício público e religioso de guarda incorruptível das ideias, dos sentimentos, dos costumes, das obras e das palavras", que exige, por um lado, uma alta posição ética, por outro lado, uma total independência de pensamento e de carácter. Como consequência, e numa clara alusão a Castilho, Antero repudia a poesia que cultiva a "palavra" em vez da "ideia"; a poesia decorativa dos "enfeitadores das ninharias luzidias"; a poesia conservadora dos que "preferem imitar a inventar; e a imitar preferem ainda traduzir"; em suma, a poesia que "soa bem, mas não ensina nem eleva". O autor das Odes Modernas preconiza ainda que a literatura portuguesa acompanhe "o pensamento moderno", "as tendências das ciências", "os resultados de trinta anos de crítica", "a nova escola histórica", "a renovação filosófica".

Feitas as apresentações, cabe dar início aos trabalhos. Por meu lado não posso assumir o compromisso de que postarei aqui todos os dias religiosamente. O mesmo, por certo, dirá o caro Dantas. Todavia uma coisa garantimos: o que aqui se colocar, e perdoe-se-nos a imodéstia, terá qualidade e valerá a pena ser lido.


Dominus Illuminatio Mea