15 janeiro 2011

L'étranger - Albert Camus

"Sentou-se na cama e explicou-me que tinham andado a investigar a minha vida privada. Tinham descoberto que a minha mãe morrera recentemente no asilo. Procedera-se então a um inquérito em Marengo. Os investigadores tinham sabido que eu «dera provas de insensibilidade» no dia do enterro. «Veja se compreende», disse o advogado, «custa-me um bocado perguntar-lhe isto. Mas é muito importante. E será um grande argumento para a acusação, se eu não conseguir dar resposta». Queria que eu o ajudasse. Perguntou-me se eu, nesse dia, tinha tido pena da minha mãe. Esta pergunta muito me espantou, e parecia-me que não era capaz de a fazer a alguém. Não obstante, respondi que perdera um pouco o hábito de me interrogar a mim mesmo, e que era difícil dar-lhe uma resposta. É claro que gostava da minha mãe, mas isso não queria dizer nada. Todos os seres saudáveis tinham, em certas ocasiões, desejado, mais ou menos, a morte das pessoas que amavam. Aqui, o advogado cortou-me a palavra e mostrou-se muito agitado. Obrigou-me a prometer que não diria isto na audiência, nem ao juiz de instrução. Expliquei-lhe, no entanto, que a minha natureza era feita de tal modo que as minhas necessidades físicas perturbavam frequentemente os meus sentimentos. No dia do enterro, estava muito cansado e com muito sono, de forma que não dei lá muito bem pelo que se passou. O que podia afirmar, com toda a certeza, era que preferia que a mãe não tivesse morrido. Mas o advogado não ficou contente. Disse: «Isso não chega»."


Extracto de L'étranger


Já vai sendo tempo de escrever qualquer coisa no Ex Libris. O início de ano, com os exames a decorrer, não me permitiu antes escrever um novo post, pelo que a esta altura, agora com algum tempo para o fazer, faço-o com especial gosto. Desta vez é sobre Camus e o seu livro L'étranger que me proponho escrever. Uma obra, cuja leitura fiz há cerca de um ano atrás, muito importante na compreensão de um dos aspectos mais importantes, se não mesmo o aspecto fundamental, da sua filosofia: o absurdo.
L'étranger constitui indubitavelmente uma das obras centrais daquilo a que se chama a grande literatura existencialist
a francesa, ainda que o próprio Camus rejeite a classificação de L'étranger como um romance existencial. L'étranger é um livro sobre a hipocrisia do ser humano, que utiliza os sentimentos como forma de manipulação e de conquista do poder. É um grito de revolta contra uma sociedade que oprime aqueles que defendem a verdade até ao fim; de grande conteúdo filosófico, trata-se de um marco na literatura do século XX, sem deixar de ser uma história simples e acessível a qualquer leitor. Em linhas gerais a história que nos aparece em L'étranger é a seguinte:
Um homem aparentemente normal e com uma vida vulgar na Argélia de meados do século XX,- Mersault - recebe a morte da mãe sem sentir qualquer consternação, mostrando-se indiferente à cerimónia de vigília e enterro. E logo no dia seguinte diverte-se com uma nova amante sem sentir quaisquer remorsos. Frequentador dos pequenos prazeres da vida, vivendo uma felicidade morna no seu quotidiano que muito aprecia, abstinente dos grandes compromissos e das grandes ambições, o que estranha quer a sua amante - que numa proposta de casamento Mersault lhe responde que «tanto faz» - quer o seu patrão - que numa proposta de promoção para uma colocação em Paris aquele igualmente lhe responde que «tanto faz» - enreda-se sem querer num conflito entre um seu amigo e uns árabes, e, num momento infeliz em que se encontra extremamente perturbado por um grande sol e calor, mas sem estar movido por nenhuma animosidade sentimental em especial, mata um deles.

Nas conversas com o advogado e o juiz de instrução e no julgamento que se segue, Mersault deixa todos exasperados pelo facto de não assumir qualquer sentimento de culpa ou remorso perante os seus actos «imorais», com maior ênfase no episódio do enterro da mãe do que no próprio assassínio pelo qual é julgado e pela heresia do não reconhecimento de Deus como salvador da sua alma. A suprema indiferença pelos supostamente elevados «valores» humanos e sociais, a coberto de uma inocência velada que se sente na personagem, expurgada e livre dos antanhos responsáveis pela vida angustiada da maioria da Humanidade (temente ao Homem e à divindade, mas castigada sempre em primeiro lugar pelo Homem) revela em Mersault um homem absurdo, um estrangeiro no seu próprio meio, que sensível ao presente e ao dia -a- dia, desfruta-o o melhor possível. Inconsciente, mas lucidamente não consegue aderir às normas de convívio em sociedade conquanto absurdas lhe parecem, considerado ele próprio absurdo por essa sociedade e, por essa razão, condenado sem apelo nem agravo.

A edição que tive ocasião de ler - da Editora Livros do Brasil - é magnificamente prefaciada por Jean-Paul Sartre, sendo que desse texto introdutório destacaria o seguinte excerto:

Camus, em «O Mito de Sísifo» publicado alguns meses depois, deu-nos o comentário exacto da sua obra: o seu herói não era bom nem mau, nem moral nem imoral. Tais categorias não lhe convêm: faz parte de uma espécie muito singular, à qual o autor reserva o nome de absurdo. Mas, sob a pena de Camus, essa palavra adquire duas significações muito diferentes: absurdo é, ao mesmo tempo, um estado de facto e a consciência lúcida que certas pessoas tomam desse estado. É «absurdo» o homem que, de um absurdo fundamental, tira incansavelmente as conclusões que se impõem. Há aí um deslocamento de sentido igual ao que ocorre quando se chama «swing» uma juventude que dança o swing. O que é então o absurdo como estado de facto, como dado original? Nada menos do que a relação do homem com o mundo. O absurdo fundamental manifesta, antes de tudo, um divórcio: o divórcio entre as aspirações do homem à unidade e o dualismo intransponível do espírito e da natureza, entre o impulso do homem em direcção ao eterno e o carácter finito da sua existência, entre a «preocupação» que é a sua própria essência e a inutilidade dos seus esforços. A morte, o pluralismo irredutível das verdades e dos seres, a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os pólos do absurdo.

Sem dúvida, uma obra-prima da literatura universal e de leitura fundamental. Camus constitui - é inegável - um artista ímpar na concepção da palavra por influir nos sentimentos do leitor, ainda que estes possam ser de repugno ante a leitura. Com uma linguagem rápida e objectiva, Camus junta-se a um Kafka ou a um Dostoiévski no coro de questionamentos aos valores morais do mundo. Os três conseguem subverter aquilo que é mais valioso para os homens. Mostram como toda a estrutura social – instituições, leis, religiões, ideologias – é frágil, parecendo absurdo até mesmo para uma obra de ficção, mas, ainda assim, incapaz de causar revolta a quem vê dessa forma. Enfim, em L'étranger podemos vaguear entre os extremos dos sentimentos e a incompreensão, sendo verdadeiramente aí que reside a genialidade desta obra.




Fica como sugestão de leitura sobre a vida e obra de Camus o seguinte link

http://filosofocamus.sites.uol.com.br/CAMUS.htm

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