28 março 2011

Nemésio e a Açorianidade

"(...) Quisera poder enfeixar nesta página emotiva o essencial da minha consciência de ilhéu. Em primeiro lugar o apego à terra, este amor elementar que não conhece razões, mas impulsos; e logo o sentimento de uma herança étnica que se relaciona intimamente com a grandeza do mar.
Um espírito nada tradicionalista, mas humaníssimo nas suas contradições, com um temperamento e uma forma literária cépticos, - o basco espanhol Baroja, - escreveu um livro chamado Juventud, Egolatria 'O ter nascido junto do mar agrada-me, parece-me como um augúrio de liberdade e de câmbio'. Escreveu a verdade. E muito mais quando se nasce mais do que junto do mar, no próprio seio e infinitude do mar, como as medusas e os peixes (...)
Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os actos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quási religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água (...)

Vitorino Nemésio, in Revista Insula, 1932




Vitorino Nemésio. Um nome maior da Cultura em Portugal, um vulto verdadeiramente, um homem genial, quiçá por isso, também incompreendido. Decidi hoje escrever sobre esta figura incontornável porque, desde que o recordei na Cerimónia dos 100 anos da Universidade de Lisboa - num breve excerto sobre o seu inolvidável ,e tão desconhecido hoje, programa televisivo Se bem me lembro - ficou-me na memória e urge que neste espaço eu lhe renda a mais sincera homenagem. Lamento profundamente que tal programa hoje não passe numa RTP Memória e seja dado a conhecer às gerações de hoje, mesmo até à minha geração, que desconhecerá, na sua maioria, a figura maior deste ilustre escritor,poeta e intelectual. Nemésio marcou indelevelmente o panorama literário e cultural portugueses.
Nascido nos Açores, este grande escritor português de vocação europeia foi quem melhor sintetizou, no conjunto da sua obra literária, o produto histórico de cinco séculos de vivência humana no meio de mar e de solidão, de vulcões e de tempestades, que ele um dia designou por açorianidade e que nós, irremediavelmente, identificamos como a nossa alma. Para Nemésio – e para nós, açorianos, através das palavras dele –, a geografia «vale outro tanto como a história [...]. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar».
A preocupação de Vitorino Nemésio de resolver pela escrita as suas preocupações de escritor em busca das suas raízes revelou-se extremamente produtiva, sobretudo através da sua memorável obra Mau Tempo no Canal. Na sua vasta obra literária pontificam ainda outros títulos fundamentais, todos eles espelho, de algum modo, daquilo que o conceito de açorianidade encerra. Dir-se-ia que na obra de Nemésio, como num búzio, ouvimos a açorianidade.Vitorino Nemésio havia deixado a sua ilha natal -Terceira - para estudar no Continente, primeiro em Direito, depois em Letras, vindo esporadicamente à terra que o viu nascer, sendo que num desses retornos acompanhou Raúl Brandão na viagem que este empreendeu aos Açores, em 1924.
Mas falemos da açorianidade, neologismo que Nemésio haveria de criar.Em 1932 a revista Insula, editada em Ponta Delgada, dedicava o seu número 7-8 (Julho-Agosto) à comemoração do V centenário do descobrimento dos Açores e Nemésio aparecia aí com uma breve colaboração intitulada exactamente “Açorianidade”. Este texto, que assinalava a entrada em circulação do neologismo tem constituído um ponto de referência no âmbito dos estudos nemesianos, em termos do que poderemos entender como um “pensamento insular” (arquipelágico, se quisermos lançar pontes a Edouard Glissant) que por diversos modos e tempos se vai formalmente estabelecendo e, no mesmo passo, enforma boa parte da escrita ficcional do autor. É pois essa efeméride e as respectivas celebrações que o levam a trazer a público uma reflexão sobre a condição insular açoriana, enquanto realidade cujas origens históricas entroncam directamente nos descobrimentos quatrocentistas. Fugindo àquilo que já uma vez referira como “os hinos à terra, no estilo das caravelas e das cruzes de Cristo dos cinzeiros” , Nemésio prefere falar da sua “consciência de ilhéu”, e por isto há-de entender-se o particular modo de ver e sentir o mundo, em íntima relação com a percepção e a vivência do espaço (sintomaticamente, a enunciação singular do eu dará lugar ao colectivo nós). Se é certo que em “Açorianidade” Nemésio põe lado a lado o contributo da história e o da geografia na formação do homem açoriano e da sua mundividência, com a reconhecida afirmação de que “a geografia, para nós, vale outro tanto como a história”, não é menos verdade que aí o autor se ocupa muito mais dos aspectos atinentes ao espaço, à geografia, que ajudaram a moldar e diferenciar esse português de Quatrocentos que deixou a casa histórica peninsular para nunca mais regressar o mesmo, como escreveria o Professor Eduardo Lourenço.
Não será de mais repetir-mo-nos, referindo Mau Tempo no Canal - livro enformado em maciça medida por essa açorianidade e pelas suas características- o que faz dele uma obra universal. É uma sociedade pequena e centrada na cidade da Horta, que vive todos os traumas sentidos pelo seu tempo, que nos é descrita magistralmente pelo autor. Como nos diz Machado Pires - grande estudioso de Nemésio e seu discípulo - a universalidade do romance resulta da vivência humana, da dramaticidade da condição do ser ilhéu. E essa condição redime tudo; não há um regionalismo no sentido empobrecedor. O que é geograficamente regional transforma-se em universal por uma vivência humana. Ele (Nemésio) promoveu de tal maneira o que se passa nos Açores que entrou para o grande padrão da condição humana.
Bastará portanto, como também diz Machado Pires, Mau Tempo no Canal para impor um grande escritor. E Nemésio foi-o efectivamente: um grande escritor, um grande erudito, um grande homem das letras. Por tudo isto, que ficará sempre aquém do que em justiça se poderia e deveria dizer de melhor sobre o autor e a sua obra, expresso o desejo profundo de que a obra de Vitorino Nemésio integre os programas liceais, pela sua indiscutível importância e contributo para a formação intelectual do jovem, futuro cidadão. Fortemente marcado pelas suas raízes insulares, pela vida açoriana, pelas recordações da sua infância e ainda pela profunda humanidade face à existência e ao sofrimento da vida humana, Nemésio será sempre um marco indelével da nossa Cultura e um nome a conhecer pela eternidade dos seus escritos.

3 comentários:

Leandro Alvor da Silveira disse...

excelente texto, Dantas!

Mas um dia destes explico-te porque não existe açorianidade :)

abraço!

hmdantas disse...

Filipe,

Este é, de facto, um texto fabuloso. Penso que isso se deve à elevada compreensão que o seu autor tem da açorianidade (quer ela exista ou não) - por isso, não poderia ser eu a escrevê-lo.
As felicitações, assim como os esclarecimentos, devem ser prestados ao André Feijó.

Abraço!

A. M. Feijó disse...

Caro Filipe,

Poucos na literatura das ilhas nos souberam escrever a alma (açoriana) com tanta mestria! Nemésio fê-lo de modo sublime,encerrando nesse conceito de açorianidade as idiossincrasias próprias do ilhéu. Por essa razão, o Romance que o consagra é algo de que só pode falar-se com um sentimento de infinito respeito e, se não encontramos muita gente por aí a falar dele é porque não existe, porventura, muita gente capaz de semelhante sentimento. Mau Tempo no Canal é uma obra que sobretudo se define, e assim igualmente se furta a qualquer definição, pela obsidiante presença de uma indefinível dimensão poética, através da qual tudo o mais se avoluma, se transfigura e se eterniza. Na obra - dir-se-ia um "microcosmo exemplar - não está tudo, mas estão os Açores todos; a marca profunda de insularidade e da riqueza de conhecimentos de Nemésio está lá. Arriscaria dizer, com todas as consequências daí decorrentes que, como a Montanha Mágica de Mann, também Mau Tempo no Canal se constitui como um singular Bildungsroman.
Discordarei profundamente do niilismo presente na tua frase de que "não existe açorianidade". Já em Antero ela existia na forma mais irredutível e ao mesmo tempo a única aceitável como sinal inequívoco de uma óbvia singularidade, de que a sua imaginação é testemunha. A açorianidade existe e refere-se ao nosso enraizamento afectivo, de intensa coloração cultural açoriana, que tanto pode ser, equivocamente, o regresso ao seio materno como desejo de integrar a antiga comunhão dos nossos, o comum sentir da nossa comunidade ancestral.


" Nós não temos medo que o mar nos alague ou de que a terra nos falte: - temos sempre presente, como salutar advertência,a sensação de que o Mundo é curto,e o tempo mais curto ainda". - V. Nemésio


Cumprimentos!

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