Torna-se uma tarefa por demais árdua expor num breve texto a verdadeira revolução que conhecerá ao longo de dois séculos o pensamento europeu, e apenas esse pensamento, sublinhe-se. No século XVII verificou-se uma ofensiva contra o princípio da autoridade. No século XVIII, esta ofensiva parece ter triunfado em todo o lado. Note-se o que escreveria o historiador inglês Norman Hampson, na sua obra O Século das Luzes: “ O horizonte intelectual da maioria das pessoas cultas da primeira metade do século XVIII era dominado por duas fontes de autoridade quase incontestadas: os textos sagrados e os clássicos. Cada uma à sua maneira perpetuava a ideia de que a civilização tinha degenerado a partir de uma Idade de Ouro”. A preocupação mais racional do homem contemporâneo residia, por conseguinte, em estudar os antigos, felizes por regressarem ao tipo de sociedade que estes haviam conhecido. Os movimentos europeus – o Renascimento e a Reforma – tinham reforçado esta atitude e a autoridade dos textos sagrados. O Renascimento e a pedagogia humana tinham-se baseado amplamente numa renovação dos estudos gregos e latinos. Hampson refere-se à “ardente veneração de tudo o que se sentia pelos clássicos”.
No século XVIII, a principal característica reside assim na ofensiva vitoriosa contra o princípio da autoridade; seja qual for o vigor crítico do espírito humano, este, face ao desconhecido, tem necessidade de apoios, de tutores. Partindo do princípio de que a civilização dos Antigos foi perfeita, a verdade está contida nos seus escritos: Aristóteles para a filosofia, os gregos Hipócrates e Galeno para a medicina; Vitrúvio para a arquitectura, etc. Até mesmo no teatro irá descobrir-se na Antiguidade uma “regra das três unidades”, de lugar, de espaço e de tempo, sem a qual a peça não seria boa. A resistência aos Antigos surge como relativamente anódina em matéria de arte e literatura. É, pelo contrário, significativa no domínio científico. Ora, se é inegável que, no campo artístico, os Antigos e especialmente os Gregos são autores de obras-primas esculturais e arquitectónicas inultrapassáveis, nada prova que fosse impossível igualá-los, seguindo outras vias. Os homens chegaram, obscuramente, a esta conclusão. Enquanto a arte renascentista tentava, em certa medida, um retorno Às linhas antigas, assistiu-se ao nascimento, no século XVI, de um novo estilo artístico: o Barroco. O estilo barroco nasceria em Itália, a partir das experiências maneiristas de finais do século XVI, e viria a expandir-se rapidamente para outros países europeus, com manifestações na Arquitectura – sobretudo aí – e na literatura, na Ciência e nas artes plásticas e decorativas. Ora, sem prejuízo, de as outras manifestações serem de um interesse fascinante, centrar-nos-emos apenas nas artes plásticas, vulgo, na pintura, onde sobressai um nome que todos conhecemos, lapidar em toda a arte pictórica barroca: Caravaggio.
Pintor italiano, Michelangelo Merisi ficou conhecido como Caravaggio, o nome da aldeia onde nasceu em 1573, situada perto de Milão. Ficaria famoso pelas pinturas religiosas nas quais o contraste entre a luz e sombra na modelação dos corpos e dos espaços introduz uma atmosfera dramática de intensa espiritualidade. O Tocador de Alaúde e A Cigana que prevê o Futuro contam-se entre os seus primeiros trabalhos, encomendados pelo Cardeal Francesco del Monte. A maturação do seu estilo começou com a decoração de uma capela em S. Luigi dei Francesi, em Roma, que provocou controvérsia. Os modelos das suas composições eram figuras vulgares, camponeses e membros das classes mais baixas. O realismo, a ousadia, a originalidade com que representava cenas religiosas levou à rejeição da obra pelo clero. A versão finalmente aceite de S. Mateus e o Anjo data de 1599. As primeiras versões de O Martírio de S. Pedro e A Conversão de S. Paulo, pintadas na capela de Santa Maria del Popolo em 1600, foram igualmente rejeitadas. A irreverência que caracterizava a sua obra fazia igualmente parte do seu carácter. Turbulento e desordeiro, viu-se obrigado a fugir à justiça em 1606, partindo para Nápoles. O seu périplo, assinalado por disputas e vinganças, conduziu-o de Nápoles a Malta, depois à Sicília e novamente a Nápoles, onde foi gravemente ferido. Acabou por morrer, em 1610, num pequeno porto toscano com um ataque de malária, contraída durante uma passagem pela prisão local, vítima de um mal-entendido. As últimas obras, realizadas em Malta e na Sicília, acentuam a simplicidade das formas e o poder dramático criado pelo contraste entre a luz e sombra. A sua influência é sobretudo assinalável nos artistas flamengos e holandeses, o que inclui Rubens e até Rembrandt e os pintores da escola de Utrecht. Vai ainda influenciar a pintura espanhola, designadamente Velásquez e Murillo.
A atitude artística de Caravaggio é de franca rebeldia em face dos convencionalismos da época. O estranho realismo do pintor consiste não em copiar e observar a natureza, mas em contrapor o valor moral da prática ao valor intelectual da teoria. O aspecto mais notável da sua obra é – como dissemos - o tratamento da luz, que recebe o nome de tenebrismo. Consiste em projectar a luz sobre as formas com violência e em contraste intenso e brusco com as sombras. O seu precoce domínio dos efeitos claro-escuro viria marcar o início de uma das grandes conquistas da pintura barroca. Outra característica primordial do estilo caravaggiano é o naturalismo exacerbado como reacção face ao idealismo renascentista. Naturalismo que, por outro lado, não está em duelo com a grandiosidade da composição. A este interesse naturalista respondem quadros de costumes como Mulher a Tocar o Alaúde e Jogadores de Cartas, pintados na sua primeira época. A plenitude do seu estilo encontrar-se-á em cenas religiosas que trata com um naturalismo e um realismo quase insolentes. Tal é o caso de O Santo Enterro e de O Enterro da Virgem. Nesta última obra, a figura da Virgem é inspirada no cadáver de uma mulher afogada no Tibre e com o ventre inchado. A exposição pública deste quadro numa igreja choca com o gosto classicista imperante em Roma e tem que ser retirado. A influência de Caravaggio sente-se poderosamente em Itália e no resto da Europa durante todo o século XVII, e os seus seguidores continuam a cultivar o tenebrismo e o naturalismo no século seguinte.
Concluiremos portanto que Caravaggio se distingue enquanto artista enigmático, fascinante e até perigoso. Tomando emprestada a imagem de pessoas comuns das ruas de Roma para retratar Maria e os apóstolos, tal facto não poderia deixar de ser imensamente polémico e controverso. Talvez tenha sido um dos primeiros artistas a saber conciliar a arte com o “ministério de Jesus”, que aconteceu exactamente entre pescadores, lavradores e prostitutas. Levou esse princípio estético às últimas consequências, a ponto de ter sido acusado de usar o corpo de uma prostituta retirada morta do rio Tibre, para pintar A Morte da Virgem. Esta foi, portanto, uma das duas mais importantes características das suas pinturas: retratar o aspecto mundano dos eventos bíblicos, usando o povo comum das ruas de Roma. A outra característica marcante foi a dimensão e o impacto realista que deu aos seus quadros, ao usar um fundo sempre obscuro, muitas vezes totalmente negro, e agrupar a cena em primeiro plano com um foco intenso de luz sobre os detalhes, geralmente os rostos. Este uso de sombras e luz é uma das coisas mais marcantes nos seus qua
dros que - de algum modo - nos atrai para dentro da cena. Não só a acção é dramática como também o modo como tal nos é dado ver, como a própria acção é montada. Repare-se na teatralidade dos gestos e no contraste cromático. Todos estes elementos convergem para a construção no sentido de espectáculo. Tudo isto faz da obra de Caravaggio uma obra absolutamente extraordinária e fascinante, que nos deslumbra ante cada quadro. Espero pois - numa viagem que empreenderei em breve a Londres – deleitar-me com algumas das suas pinturas, presentes na National Gallery, esperança essa que me levou desta vez a escrever sobre este Grande Mestre.
Os quadros que surgem ao longo do texto têm os seguintes títulos( por ordem de aparição):
1. Retrato de Caravaggio;
2.A Ceia em Emaús, de 1601;
3.O Tocador de Alaúde, de 1595;
4.Deusa da Boa Ventura, produzida entre 1595-1598;
5. Baco;
6. A coroação com espinhos, produzida entre 1602-1604;